Romance profundo, intenso e delicado, em que o destino parece perder-se algures entre a razão e as paixões
A construção de uma realidade como resultado de actos da razão ou de impulsos passionais, a sua aceitação tal como ela se nos apresenta, ou a incerteza sobre a possibilidade de a alterar, parece ter sido o conjunto de ideias que orientou o escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989) na escrita do romance A Irmã. Publicado originalmente em 1946 – foi o último editado na Hungria antes do seu exílio voluntário em protesto contra o regime comunista que proibiu as suas obras – é a descrição minuciosa do itinerário da auto-destruição de alguém que, sentindo-se acossado pelas convenções sociais, se perde na luta entre a razão e a paixão, na busca desorientada de um sentido oculto que suporte a responsabilidade do homem sobre a sua existência. O destino do ser humano é exercer a sua vontade livremente? Haverá outra saída da vida para além do naufrágio? “O que sabemos sobre a vida? Nada que seja real. Vivemos entre fantasias idealizadas que parecem ser retiradas de imagens de postais.”
Dividido em duas partes distintas, a primeira narra um encontro ocasional entre um escritor (o narrador) e Z., pianista e compositor famoso, numa albergaria nas montanhas da Transilvânia, poucos dias antes do Natal de 1941, em plena Segunda Guerra. A inesperada chuva destruíra os sonhos de paisagens nevadas, e assim os poucos hóspedes viram-se confinados àquele espaço “que mais se parecia com uma prisão”, onde nem se podia desfrutar “do triste luxo da solidão”. Mas um acontecimento imprevisto veio alterar as rotinas: o suicídio de um casal de amantes de meia-idade, ambos com uma vida estável, com cônjuge e filhos. Foi nessa noite que o pianista Z. conversou com o escritor, lhe contou da doença, a razão de não ter dado concertos nos últimos três anos (desde o começo da guerra) e da sua impossibilidade de voltar a tocar; prometeu que lhe entregaria o diário desses anos (acamado num hospital em Florença – onde é “salvo” por uma voz misteriosa – devido a uma rara doença que lhe deixou paralisados dois dedos de uma mão). O músico insinuou ainda sobre uma ligação obsessiva (a causa da estranha doença?) a uma senhora da alta sociedade (conhecida do escritor), e ambos discorreram sobre os efeitos das paixões. “Não me posso conformar com a ideia de que algum sentimento seja mais forte do que a razão… Que seria do mundo se admitíssemos esta possibilidade? Que tipos de alternativas poderiam surgir se no mundo das pessoas mentalmente saudáveis e sóbrias devêssemos admitir a possibilidade de a paixão deflagrar com toda a sua potência?”
A segunda parte do romance é o minucioso e comovente diário onde Z. dá conta da travessia dolorosa desses tempos da doença (numa espécie de diálogo com a dor diante de uma parede branca que parece querer acentuar a nudez desse universo existencial), das alucinações sob o efeito da dor e da morfina, da precariedade da existência humana (em diálogos com os médicos e as freiras que o tratam), e da sua relação amorosa com uma mulher casada. Ao pensar o homem na sua solidão, ao olhar agora a vida como um naufrágio e ao ver no sacrifício a suprema derrota, Z. como que ilustra a frase com que define o abandono da música e a fugacidade da fama, “morrer para a vida e renascer para a morte”.
Ambas as histórias parecem dialogar entre si como num jogo de espelhos: o desenlace (suicídio passional) descrito na primeira pode ser uma sugestão para a história da segunda parte do livro; a primeira como resultado de uma paixão desenfreada, sem traços de racionalidade, e a segunda como amarga consequência de uma paixão reprimida que nunca respondeu a impulsos. Ao estabelecer paralelismos entre a história de Z. e a da Europa (a acção decorre em plena guerra, a doença de Z. manifestou-se no começo dessa guerra), Sándor Márai centra-se na individualidade para tentar perceber uma dimensão maior, a de um povo: “A educação, a moral, as leis sociais, tudo isso não é suficiente para conter o ataque da paixão nos momentos cruciais? É um caminho pantanoso – pensei – e aonde chegaremos nós, os europeus, se optarmos por seguir essa senda anárquica? Essa revolta só pode ser uma forma grave de neurose.” A vida apresentada como algo inseparável da mentira, como aliás já acontecia em romances anteriores, A Ilha, Divórcio em Buda, ou As Velas Ardem Até ao Fim; a mentira que se transforma em doença.
A Irmã, romance intenso e de uma profunda delicadeza, para além de ser – como grande parte da obra de Sándor Márai (na linha de Zweig, Schnitzler, Musil ou Stuparich) – um subtil retrato de uma certa burguesia abastada e cosmopolita da Mitteleuropa (essa Europa mítica sempre à beira do abismo, herdeira cultural do colapso do Império Habsburgo), é ainda um exercício trágico e melancólico de profundidade psicológica, introspecção e reflexão.
Texto de José Riço Direitinho
in Jornal Público, 14/11/2013