domingo, 18 de janeiro de 2015

Contrariedades

Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde' 

Viver sempre também cansa

Viver Sempre também Cansa

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

José Gomes Ferreira, in 'Viver Sempre também Cansa' 

As ondas

Por Alexandra Lucas Coelho 
Poucos romances, em todo o século XX, nos mostraram tão intensamente como a literatura podia ser ainda uma coisa nova e viva
Podemos começar pelo que este livro não é, para arrepiar caminho. E para isso, tomemos de empréstimo o que dele disse Jorge Luis Borges: "Não há argumento, não há conversa, não há acção." Era um cumprimento. E Virginia Woolf estaria de acordo. Assim, solto da ganga romanesca e dentro da cabeça que pulsa, o quis ela, desde o princípio.
Em Novembro de 1928 - tinha ela 44 anos, e era já a autora aclamada de "Orlando, "Mrs. Dalloway" ou "Rumo ao Farol", três dos seus mais notáveis romances -, escreveu Virginia Woolf no seu diário: "Quero eliminar todo o desperdício, todas as coisas mortas, o supérfluo: dar o momento inteiro, com tudo o que faz parte dele. Digamos que o momento é um misto de pensamento, de sensação, a voz do mar... Esse medonho assunto da narrativa realista, avançar do almoço para o jantar, é falso, irreal, meramente convencional. Porquê admitir algo na literatura que não seja poesia - até à saturação, mesmo? É isso que quero fazer em 'As Mariposas'"
"As Mariposas" foi, entre 1928 e 1929, o título provisório desse projecto, dessa "tentativa completamente nova" no interior da literatura. Depois, quando Virginia Woolf se lembrou "de repente" (a expressão é dela) que as mariposas só voam de noite, mudou o título para "As Ondas". E no Outono de 1929 começou a escrever aquela que viria a ser considerada por muitos (não Borges, que preferia "Orlando") a sua obra-prima.
Bernard, Neville, Louis, Jinny, Susan, Rhoda. Seis personagens, seis vozes que falam, não umas com as outras, não para fora, mas dentro de si - há ainda uma sétima personagem, Percival, que a todos fascina, mas que nunca escutaremos.
Cada fala destas seis personagens (seis faces de um rosto único?) é a torrente caótica e fabulosa de imagens e palavras que se forma dentro da cabeça em minutos, em segundos. São eles - as suas vozes, sempre em discurso directo - que nos levam através do seu percurso, da infância à maturidade, em nove etapas. O livro percorre, nessas etapas, o tempo da vida humana.
Mas há um outro tempo, paralelo, sem personagens, sem fala, antes de cada etapa: uma descrição da viagem que o sol faz ao longo de um dia, e do efeito desse movimento numa paisagem com mar. As ondas quebram-se assim, sincopadamente, tal como bate o coração. 

http://static.publico.pt/docs/cmf/autores/virginaWolf/amanha.htm

Virginia Woolf Documentário

                   
                       http://youtu.be/2Hnlsh8WyPE

As ondas

Em nove nítidos e distintos movimentos, três homens (Bernard, Louis e Nevville) e três mulheres (Susan, Rhoda e Jinny) monologam sobre suas vidas, da infância à velhice. Em contraponto, o Sol tece seu percurso diário sobre o mar. Há uma sétima voz, ausente, Percival, que jamais se manifesta, aparecendo apenas em referências dos outros personagens. Por volta do meio-dia, no quinto movimento, o Sol e as vidas de cada um começam a declinar. Se até esse momento cintilava o brilho das descobertas a serem feitas, das coisas a serem vividas, à medida que a noite se aproxima, aproxima-se também a solidão inevitável da velhice.
Diz Jinny: “Esta é a pausa de um momento: o momento sombrio. Os violinistas erguem seus arcos”. E, quando, os arcos tocam as cordas, inexorável como o movimento do dia, a vida desaba. É Bernard quem reconhece: “Durante todo o dia de trabalho, em intervalos, minha mente ia a um lugar vazio, dizendo: ‘O que se perdeu? O que terminou?’ E murmurei: ‘Acabou, acabou’ “. Como temas de uma peça barroca, enovelam-se os altos e baixos de esperanças e frustrações, cada vez mais próximos da dura consciência de que um ser humano pouco ou nada pode fazer pela solidão do outro.
Em 1930, Virginia anotava em seu diário, referindo-se a um romance provisoriamente intitulado Os Efêmeros: “Acho que este é o mais complexo e o mais difícil de meus livros. Como terminá-lo, a não ser por uma enorme discussão na qual cada vida terá sua voz, uma espécie de mosaico, não sei”. Um ano depois, saía a primeira edição de As Ondas, que chega ao Brasil quarenta anos depois do suicídio da autora, em excelente tradução de Lya Luft.
Apesar da insegurança inicial, Virginia Woolf parecia compreender perfeitamente a grande obra que estava compondo. Assim, rompendo radicalmente com as normas ficcionais da época, ela solidificou a originalidade narrativa numa estrutura quase matemática. Talvez por isso a soberba técnica de As Ondas aproxima-se muito mais da música erudita, como observou sua tradutora francesa, Marguerite Yourcenar, que da literatura.
Ao final do dia, para os seis personagens, resta ainda uma última batalha a ser travada, contra a morte – batalha que a própria Virginia abreviou jogando-se no rio Ouse. Sua sensibilidade não passou impune mas, neste romance perfeito como uma composição de Bach, fica registrada a sensação de que, talvez, “por um momento, nossa vida se ajusta à majestosa marcha do dia através do céu”.
Caio F. Abreu
Publicada na Revista Veja, em 21 de janeiro de 1981

A irmã de Sándor Márai



Romance profundo, intenso e delicado, em que o destino parece perder-se algures entre a razão e as paixões
A construção de uma realidade como resultado de actos da razão ou de impulsos passionais, a sua aceitação tal como ela se nos apresenta, ou a incerteza sobre a possibilidade de a alterar, parece ter sido o conjunto de ideias que orientou o escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989) na escrita do romance A Irmã. Publicado originalmente em 1946 – foi o último editado na Hungria antes do seu exílio voluntário em protesto contra o regime comunista que proibiu as suas obras – é a descrição minuciosa do itinerário da auto-destruição de alguém que, sentindo-se acossado pelas convenções sociais, se perde na luta entre a razão e a paixão, na busca desorientada de um sentido oculto que suporte a responsabilidade do homem sobre a sua existência. O destino do ser humano é exercer a sua vontade livremente? Haverá outra saída da vida para além do naufrágio? “O que sabemos sobre a vida? Nada que seja real. Vivemos entre fantasias idealizadas que parecem ser retiradas de imagens de postais.”


Dividido em duas partes distintas, a primeira narra um encontro ocasional entre um escritor (o narrador) e Z., pianista e compositor famoso, numa albergaria nas montanhas da Transilvânia, poucos dias antes do Natal de 1941, em plena Segunda Guerra. A inesperada chuva destruíra os sonhos de paisagens nevadas, e assim os poucos hóspedes viram-se confinados àquele espaço “que mais se parecia com uma prisão”, onde nem se podia desfrutar “do triste luxo da solidão”. Mas um acontecimento imprevisto veio alterar as rotinas: o suicídio de um casal de amantes de meia-idade, ambos com uma vida estável, com cônjuge e filhos. Foi nessa noite que o pianista Z. conversou com o escritor, lhe contou da doença, a razão de não ter dado concertos nos últimos três anos (desde o começo da guerra) e da sua impossibilidade de voltar a tocar; prometeu que lhe entregaria o diário desses anos (acamado num hospital em Florença – onde é “salvo” por uma voz misteriosa – devido a uma rara doença que lhe deixou paralisados dois dedos de uma mão). O músico insinuou ainda sobre uma ligação obsessiva (a causa da estranha doença?) a uma senhora da alta sociedade (conhecida do escritor), e ambos discorreram sobre os efeitos das paixões. “Não me posso conformar com a ideia de que algum sentimento seja mais forte do que a razão… Que seria do mundo se admitíssemos esta possibilidade? Que tipos de alternativas poderiam surgir se no mundo das pessoas mentalmente saudáveis e sóbrias devêssemos admitir a possibilidade de a paixão deflagrar com toda a sua potência?”


A segunda parte do romance é o minucioso e comovente diário onde Z. dá conta da travessia dolorosa desses tempos da doença (numa espécie de diálogo com a dor diante de uma parede branca que parece querer acentuar a nudez desse universo existencial), das alucinações sob o efeito da dor e da morfina, da precariedade da existência humana (em diálogos com os médicos e as freiras que o tratam), e da sua relação amorosa com uma mulher casada. Ao pensar o homem na sua solidão, ao olhar agora a vida como um naufrágio e ao ver no sacrifício a suprema derrota, Z. como que ilustra a frase com que define o abandono da música e a fugacidade da fama, “morrer para a vida e renascer para a morte”.


Ambas as histórias parecem dialogar entre si como num jogo de espelhos: o desenlace (suicídio passional) descrito na primeira pode ser uma sugestão para a história da segunda parte do livro; a primeira como resultado de uma paixão desenfreada, sem traços de racionalidade, e a segunda como amarga consequência de uma paixão reprimida que nunca respondeu a impulsos. Ao estabelecer paralelismos entre a história de Z. e a da Europa (a acção decorre em plena guerra, a doença de Z. manifestou-se no começo dessa guerra), Sándor Márai centra-se na individualidade para tentar perceber uma dimensão maior, a de um povo: “A educação, a moral, as leis sociais, tudo isso não é suficiente para conter o ataque da paixão nos momentos cruciais? É um caminho pantanoso – pensei – e aonde chegaremos nós, os europeus, se optarmos por seguir essa senda anárquica? Essa revolta só pode ser uma forma grave de neurose.” A vida apresentada como algo inseparável da mentira, como aliás já acontecia em romances anteriores, A IlhaDivórcio em Buda, ou As Velas Ardem Até ao Fim; a mentira que se transforma em doença.


A Irmã, romance intenso e de uma profunda delicadeza, para além de ser – como grande parte da obra de Sándor Márai (na linha de Zweig, Schnitzler, Musil ou Stuparich) – um subtil retrato de uma certa burguesia abastada e cosmopolita da Mitteleuropa (essa Europa mítica sempre à beira do abismo, herdeira cultural do colapso do Império Habsburgo), é ainda um exercício trágico e melancólico de profundidade psicológica, introspecção e reflexão.
Texto de José Riço Direitinho
in Jornal Público, 14/11/2013


 

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