domingo, 7 de fevereiro de 2016

A MULHER EM EVA LUNA DE ISABEL ALLENDE MARCIA HOPPE NAVARRO em PDF

A representação da mulher em Eva Luna, terceiro romance de Isabel Allende, confirma definitivamente a obra da escritora chilena dentro dos parâmetros do feminismo ou da Nova Critica Feminista
latino-americana.
Neste romance, a representação da mulher ocorre principalmenteatravés de duas ilações: a primeira é a força do nome escolhido pela mãe: Eva, "a primeira mulher" 1 : aquela que gerou todas as outras, ou seja, a que conserva em si o gérmen de todas as coisas.
A Eva de Allende também é expulsa do paraíso, mas isto ocorre através da mãe, Consuelo, que se vê desterrada da selva verde e úmida que cercava o convento onde nascera. Ou seja, Eva Luna, ao contrãrio da Eva da Bíblia, tem suas origens, que se encontram na mãe de cabelos de fogo e olhos translúcidos, de
origem européia não totalmente elucidada pelos frades do convento onde viveu até a adolescência.
A este elemento europeu na ascendência de Eva Luna, somase o pai, um índio forte da tribo dos "hijos de la luna" (por isso a escolha do sobrenome), que a gera em seu leito de morte, depois de ter sido picado por uma cobra surucucu. Desta mescla de raças surge Eva Luna, representante, neste caso, não apenas
da mulher latino-americana mas dum povo que se forma a partir da miscigenação.
Já em seus romances anteriores, A Casa dos Espíritos (1982) e De Amor e de Sombra (1984), Isabel Allende procurara apresentar a mulher de forma completa (não a mulher "perfeita", vejam a diferença), a mulher autêntica, sem preconceitos ou padrões pré-estabelecidos.
Em A Casa dos Espíritos a autora mostra como, apesar da permanência de alguns entraves, há uma progressiva emancipação feminina durante este século, ao narrar a história de uma família, desde 1905 até o final dos anos setenta, através de quatro gerações de mulheres. São mulheres que, apesar de pertencerem
à classe alta, ou seja, dominante, tornam-se cada vez mais conscientes de seu papel subordinado em uma sociedade masculina, patriarcal. A denúncia da ideologia patriarcal 2 que tem sido, e ainda é, dominante nas sociedades latino-americanas, ocorre, assim, através da tomada de consciência destas mulheres - desde
Nívea, a matriarca sufragista, até Alba, sua bisneta socialista - sobre a opressão que sofrem.
No entanto, em De Amor e de Sombra, a repórter Irene Beltran, que também nasce em berço de ouro, passa por uma conscientização principalmente política. Através da casual descoberta de crimes da ditadura chilena, Irene, que vivia à margem de tais ocorrências, não por oportunismo mas por pura desinformação,passa por um processo de crescente conscientização que a faz batalhar com obstinação para veicular a notícia proibida, impondo sua determinação até a pessoas acostumadas com a luta clandestina.
Só a conscientização destas personagens acerca da discriminação política, social, económica e familiar imputada à mulher já poderia enquadrar estes romances no rol das obras feministas.
Como nestes, o despertar da consciência serve para denunciar potencialidades reprimidas, a dupla moral, a domesticidade e a passividade do sexo feminino. No entanto, num sentido mais amplo, será romance feminista todo aquele que não apenas denuncie a opressão da mulher, mas que também expresse a condição e a sensibilidade feminina em qualquer de suas manifestações, e, fundamentalmente, que torne possível que a mulher seja escutada com sua própria voz.
Assim, em A Casa dos Espíritos a história é reconstruída a partir da voz de Alba que utiliza os manuscritos de sua avó Clara para não apenas "resgatar a memória do passado" mas também estabelecer uma nova versão dos fatos históricos e sociais por elas vividos. Conseqüentemente, a percepção de ambas sobre as
transformações do mundo feminino perpassa a narrativa. A história se delineia a partir do enfoque da mulher que "sociologicamente é minoria", como afirma Fábio Lucas 3 , mostrando o ponto de vista do dominado que vai gradativamente adquirindo consciência de sua situação.
Em Eva Luna a protagonista igualmente narra com sua própria voz, recriando sua história, mas, ao contrário das personagens dos livros anteriores, vive na pobreza, passando anos de miséria e até fome. Por isso, só aprende a ler e escrever na adolescência, o que não impede que faça ouvir sua voz já desde muito antes.
Mas parece que o fato de ser pobre só aumenta sua força, sua percepção acurada da dinâmica do mundo e sua incrível tenacidade para vencer. Porem, não é um "vencer" apenas no sentido de ter o sucesso profissional, apregoado pela sociedade capitalista, em função do mérito e de esforço pessoal, mas vencer,também, paradoxalmente, a vontade de vencer uma guerra cujo final não vislumbra - a guerra de ser mulher na América Latina. Ilustrarei isso com um trecho que revela a conscientização de Eva quando recorda seu primeiro amor, transformado em guerrilheiro a lutar por uma sociedade mais justa:
"Recorde la tarde lejana cuando nos conocimos, dos ninos perdidos en una plaza. Ya entonces él se consideraba un macho bien plantado, capaz de dirigir su destino, em cambio sostenia que yo estaba en
desvantaja por haber nascido mujer y debia aceptar diversas tutelas y limitaciones. A sus ojos yo siempre
seria una criatura dependiente. Huberto pensaba asi desde que tuvo uso de razón, era improbable que
la revolución cambiara esos sentimientos. Compreendi que nuestros problemas no tenian relación com
las vicisitudes de la guerrilla; aunque él lograra sacar adelante su suefio, la igualdad no alcanzaria
para mi. Para Naranjo y otros como él, el pueblo parecia compuesto sói() de hombres; nosotras debiamos
contribuir a la lucha, pero estábamos excluidas de las decisiones y del poder. Su revolución no
cambiaria en esencial mi suerte, en cualquier circunstancia yo tendria que seguir abriéndome paso
por mi misma hasta el último de mis dias. Tal vez en ese momento me di cuenta de que ia mia es una
guerra cuyo final no se vislumbra, asi es que más vale daria con alegria, para que no se me vaya la
vida esperando una posible victoria para empezar a sentirme bien. Conclui que Elvira tenia razón, hay
que ser bien brava, hay que pelear siempre."4
E Eva demonstra sua bravura e capacidade de lutar através daquilo que mais gosta: contar histórias. E este é o outro fio que conduz a narrativa, tão importante quanto o fato de ser a "primeira mulher", mencionado anteriormente.
No inicio do romance há uma epígrafe que nos remete a Scheherazade:
"Dijo entonces a Scheherazada: Hermana, por Alá sobre ti, cuentanos una história que nos haga pasar
la noche..."5
Scheherazade, a personagem mítica de As Mil e Uma Noites, vai adiando sua sentença de morte através das histórias que encantam o califa de Bagdad, que a cada noite adia a pena para poder ouvi-la e ser envolvido pelo universo mágico criado pela futura princesa. Através da imaginação e de sua infinda capacidade e contar histórias, Scheherazade se salva.
Ora, através da epígrafe percebe-se a intenção da autora que jorra límpida no transcorrer da narrativa: Eva Luna possui a mesma capacidade de dançarina árabe, é através da palavra que
se salva. A arte de contar histórias é herdada da mãe, que apesar de morrer quando Eva tem apenas seis anos de idade, já há muito transformara o pequeno quarto dos fundos de uma casa sombria em um universo mágico de sonhos e fantasias.
Mesmo sem saber ler e escrever ate a adolescência, desde a morte da mãe Eva assume o papel de contadora de histórias. Histórias cheias de detalhes que ocorrem em países distantes ou próximos, histórias que emocionam, que criticam valores da sociedade contemporânea. Filha bastarda, empregada domestica aos oito anos de idade, Eva Luna sobrevive à violência do mundo através destas histórias, que a fazem viajar e viver situações incríveis, retendo em suas pupilas bem abertas tudo que ainda não viveu. Estas histórias servem de motivo para seguir com esperança, não sucumbir ante um mundo hostil.
São contos correndo paralelos à história de Eva Luna, que, por sua vez, se forma de várias histórias distintas bem ao estilo de As Mil e Uma Noites. Parece-me fundamental 6 para o estudo da representação da mulher, o relato sobre a vida do imigrante árabe, o "turco" Riad Halabi, com ulema. Já nos preparativos
para seu casamento, a autora exemplifica, didaticamente, a coisificação a que a mulher passivamente se submete 7 . Durante seis dias a noiva é preparada para o marido, que brevemente se tornará seu dono absoluto, desde as cerimónias do banho público, ao qual á levada para que seu corpo seja exposto ao exame minucioso pelas mulheres da família do noivo, passando pelos testes de culinária, ao oferecer para os sogros pratos elaborados por ela, e de seriedade, ao expor-se a trovadores, que cantam obscenidades, sem apresentar qualquer reação.
No dia do evento não falta a prova do lençol "ensangüentado com sua pureza" que culmina um rito de humilhações às quais Zulema parece não se dar conta. Havia sido educada para ser um objeto e desempenha bem o seu papel, vendendo seu corpo em troca de estabilidade material.
Riad Halabi empenha-se terna, paciente e inutilmente em conquistar este "objeto" que agora é sua propriedade, tentando subverter o tradicional comércio do corpo/sexo da mulher pela casa/comida/roupa/jóias proporcionadas pelo marido. É ele quem sente a humilhação que deveria ter sido a dela:
"Más tarde, mientras su suegra agitaba la sábana en el balcón pintada de celeste para ahuyentar a los
malos espiritus, y abajo los vecinos disparaban salvas de fusil y las mujeres ululaban coo frenesi, Riad Halabi se ocultó en un rincón. Sentia la humillación como un puno en el vientre. Ese dolor quedó com él, como um gemido em sordina y nunca habló de ello".8
Por vontade própria, Zulema passa a viver trancada em casa, isolando-se do mundo. Quando precisa comunicar-se com alguém sempre o faz através de Riad, que atua como intérprete. Na recusa do aprendizado da língua, Zulema nega a palavra, a oportunidade de falar com sua própria voz - requisito básico para adquirirsua identidade. Educada para ser dependente, afasta-se da  palavra que poderia abalar sua convicção quanto ao lugar que a mulher deve ocupar na sociedade.
É interessante notar que depois de mais de dez anos, Zulema só aprende o espanhol com as leituras, transposições e jogos que Eva Luna faz dos contos narrados por Scheherazade em As Mil  e Uma Noites.
Mas o aprendizado da língua que lhe permite entender os contos persas é breve, só servindo para aguçar o erotismo que culmina na fracassada tentativa de liberação através da conquista de Kamal, um primo do marido. Quando se consuma o encontro amoroso e a posterior fuga do amedrontado Kamal, Zulema parece
esquecer o espanhol pois nunca mais pronuncia uma só palavra neste idioma. Zulema e Eva Luna reúnem características de Scheherazade, talvez pudesse ser dito que se fundem em Scheherazade, mas enquanto
Zulema rejeita a palavra e afunda no erotismo desenfreado, Eva Luna utiliza a palavra como meio de adquirir sua própria identidade.
O comportamento de Zulema serve os interesses da cultura patriarcal dominante, enquanto o de Eva Luna a subverte. Através das histórias que conta Eva apresenta uma contra-cultura, uma nova visão de mundo que inclui a mulher como sujeito e não apenas objeto 9 , desafiando, conseqüentemente, a cultura dominante.
Neste sentido, a ligação entre as duas personagens remete a um conto de Isak Dinesen, "Blank Page" (A página em branco) 10 .
O conto é narrado por uma velha mulher que, como Eva Luna, aprendera, de sua mãe,a arte de contar histórias. Esta mulher micialmente adverte para o fato que se o contador de histórias é fiel à história, no final o silencio falará. Relata-se no conto a atividade das freiras de um convento, que não se restringe
apenas a tecer os imaculados lençóis de linho para as núpcias das princesas, mas também engloba o papel de guardiãs da galeria de quadros com molduras douradas e placas de ouro nas quais
aparecem gravados os nomes das princesas que utilizaram o lençol, cujo pedaço, com as "marcas" da primeira noite de casamento e o motivo dos quadros. Para os observadores, cada quadro
manchado conta uma história e as princesas mais velhas fazem peregrinações pelo convento, imaginando seus desenlaces.
Contudo, no meio da galeria está pendurado um quadro cuja moldura é igual às outras e que, com o mesmo orgulho, expõe a placa de ouro com a coroa real. Mas, surpreendentemente, não há
nome inscrito na placa e o linhc dentro da moldura está completamente alvo, como uma página em branco ll.
A analogia entre o lençol manchado de sangue e a página escrita pela cultura tradicional aparece límpida. E o contraste entre as histórias contadas pelos lençóis manchados e aquela que se conta a partir do silencio da "paina em branco" reflete os comportamentos opostos de Zulema, que aceita a ideologia baseada
na dependência da mulher e no total controle masculino, e de Eva Luna, que subverte a ordem dominante, construindo sua própria identidade a partir de uma página em branco:
"Prepare uni café negro y me instale ante la máquina, tome una hoja de papel limpia y blanca, como una sábana recien planchada para hacer el amor y la introduje en el rodillo. Entonces senti algo extrai: o, como una brisa alegre por los huesos, por los caninos de ias venas bajo la piei. Crei que esa página me esperaba bacia veintitantos anos, que yo habia vivido sólo para ese instante, y guise que a partir de ese momento mi único oficio fuera atrapar las historias suspendidas en el eira más delgado, para hacerlas mias. "12
Vê-se, então,que nesta representação da mulher, Eva Lima aparece como um elemento que mantém a força pois detém, em primeiro lugar, a origem do mundo e, depois e mais importante, o
poder da palavra. A contadora de histórias infantil transforma-se no final na escritora que modifica os hábitos das telenovelas açucaradas - e quem sabe daqueles que as assistem - ao apresentar uma história forte, contestadora e comovente, que o diretor da televisão não recusa, em parte, porque quer testar a
reação dos homens do poder.
A história, a novela de Eva Luna, é a que lemos, e termina com o final da obra. Como nas telenovelas, o final feliz sela uma caminhada de infortúnios, mas não torna o livro uma história sentimental ou piegas. Antes, mostra a segurança da autora, que adia para o final o momento de juntar duas vidas, duas histórias que vinham sendo contadas desde o inicio da obra: paralelas aos capítulos narrados por Eva Luna se constrói a vida de Rolf Carlé, menino austriaco que tem durante a II Guerra seus melhores anos por causa da ausência do pai psicopata e cruel, e de cuja lembrança ele tenta se livrar ao emigrar para a América
Latina.
A união de Rolf e Eva mostra outra vez a fusão de raças que forma o continente latino-americano, e que, desde o inicio da obra, aparece como elemento importante para a representação da
mulher.
Confirma-se assim em Eva Luna a disposição de Isabel Allende de fazer ouvir a mulher latino-americana, cuja voz tem sido muitas vezes abafada, preenchendo noites silenciosas com o narrar
de suas vidas e histórias "para que o vento não o apague"13.


Notas
1 Para uma análise mais detalhada veja NAVARRO, Márcia Hoppe,
"A ideologia patriarcal em A Casa dos Espíritos", in: SCHULLER,
Donaldo et alii. Mulher em Prosa e Verso. Porto Alegre,
Movimento, 1988.
Como lembrado por Bella Josef na apresentação de EVa Luna,
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil S.A., 1988. (Tradução de Luisa
Ibanez).
3 Fa- b.io Lucas explica que a mulher pode ser considerada minoria
na ficção pois, como o indio e o negro, é comumente apenas
"objeto" do foco narrativo e raramente "sujeito", ou seja,
dificilmente agirá ela própria como narradora. Veja LUCAS, Fábio,
O Caráter Social da Ficção no Brasil. São Paulo, Editora
Atica, 1985.
4 ALLENDE, Isabel. Eva Luna. Buenos Aires, Editorial Sudamericana,
1987. p.214.
5 Idem, p.5.
6 Igualmente importante para a representação da mulher seria o
caso da transsexual Mimi, mas seu estudo exigiria um instrumental
mais psicológico.
7 ALLENDE, Isabel. EVa Luna. Buenos Aires, Editora Sudamerina,
1987. p.136.
8 Idem, p•137•
9 Ver nota n9 3.
10 In: DINESEN, Isak. Last tales. Nova Iorque, Vintage, 1975.
Em seu ensaio, "Feminist Scholarship and the social
construction of women", Gayle Green e Coppelia Kahn analisam
o conto de Dinesen sob uma perspectiva feminista. Afirmam,
por exemplo, que "with the image of the sheets, Dinesen evokes
an ideology built on male control, through the institution
of marriage, of female sexuality and reproductive power.(...)
The sheets are meant to validate the virginity of daughters
who are passed on by fathers to husbands, to ensure the
legitimacy of the heirs they will bear and to attest to the
honour of both fathers and husbands. It is this honour that
the various structures of male dominance - property, the law,
social status, political authority exist to protect". In:
GREENE, Gayle & KABN, Coppelia (org.). Making a Difference.
Feminist Literary Criticism. Londres, Methuen, 1985. p.136.
12 ALLENDE, Isabel. Eva Lune. Buenos Aires, p.230.
13 ALLENDE, Isabel. De Amor e de Sombra. São Paulo, Difel,
1986. p.5.

Trabalho pós graduação sobre Eva Luna

http://www.ufrgs.br/ppgletras/defesas/2004/cinaraferreirapavani.pdf

. Dos Meus Livros: Eva Luna - Isabel Allende

. Dos Meus Livros: Eva Luna - Isabel Allende: Comentário : Quem decide ler um romance de Isabel Allende não pode esperar grandes surpresas: terá a certeza que vai ler um livro exc...

Isabel Allende

http://www.isabelallende.com/es/home

Avenidas periféricas

Resumo: O mais recente Prémio Nobel da Literatura, Patrick Modiano, apresenta agora pela Porto Editora um romance inédito em Portugal, vencedor do Grande Prémio de romance da Academia Francesa e igualmente distinguido com o Grande Prémio Nacional das Letras. Galardões à parte que atestam, incontornavelmente, o seu mérito, desperta-se em nós a curiosidade sobre o que terá consagrado o autor. A crítica do Jornal Le Monde imprime a expresãoModianesco como um neologismo instalado: um tom angustiado, um ambiente de penumbra e enigmático, um fio invisível nem sempre perceptível ao leitor, uma inquietação insatisfeita, identidades perdidas, características tão ao gosto do clássico existencialismo francês.
Numa pequena aldeia ao lado da floresta de Fontainebleu, um bosque de faias, em plena ocupação provisória alemã, portanto entre 1940 e 1944, juntam-se ao fim de semana algumas personagens inquietantes, que abrem espaços cénicos de uma alta burguesia misteriosa e intocável. Alexandre Serge é o narrador protagonista e pelos seus olhos vemos um retrato social, uma mundividência burguesa alambicada, olhares fleumáticos, esgares silênciosos e obscursos, atitudes langurosas de personagens escorregadias, dúbias que se movem em ambientes intimistas de convívio sem relações de confiança. Murraille é chefe do jornal C'est la vie e pivot de muitas movimentações do romance, elo de ligação e de encontro de muitas personagens como é o caso do protagonista e de seu pai, um desconhecido barão a que chamam Chalva Henri Deyckecaire. A relação entre eles é fria, distante, perdida. Quem é esse pai? Um traficante, um judeu acossado, um industrial com relações duvidosas e hábitos pouco recomendáveis? A demanda de Alexandre prossegue ao longo do romance na senda de revelar a personagem de seu pai, que tinha como principal actividade vender objectos a coleccionadores fanáticos, obnubilados, desde antigas listas telefónicas, espartilhos, narguilés, postais, selos, cintos, fonógrafos, candeeiros de acetileno. Assim, procurava em Paris todo o tipo de utensílios que pudessem suscitar interesse a esses coleccionadores, extorquia-lhes grandes quantias sem qualquer relação com o valor real das mercadorias. A ânsia de aproximação a este pai desconhecido, enigmático leva o filho a tornar-se um moço de recados, querendo dar provas de iniciativa própria e de ajuda incondicional. Com o tempo, Alexandre sugere ao pai dedicarem-se aos bibliófilos, convicto de que seria fácil arranjar edições antigas a preços baixos, rentabilizando todo o conhecimento e formação que tinha adquirido no Colégio interno de Bordéus onde o pai o tinha ido buscar, com 17 anos. Com o tempo foi-se dedicando à falsificação de assinaturas dos autores e convertendo-se num factótum.
Num tempo desconexo, não linear dentro do romance, o narrador invoca o seu repositório de (poucas) lembranças, recordando o mais triste episódio da sua vida, quando o pai o tentara atirar para debaixo da linha do comboio. Surpreenda-se o leitor com o tom com que estas cenas são descritas, sem mágoas, sem traumas, como se o tempo fosse responsável por detê-las no passado sem reminiscência presente. Os flashes dos espaços e do tempos, sem continuidade ou progressão fixam os acontecimentos em cenas estáticas, suspenas e intensas. Há um momento de encontro de pai e filho, um jogo de silêncios indecifráveis, num olhar comprometido do Barão e no desespero inverbalizado de Alexandre, que reclama pela presença paternal que mais não é do que espectral, como ele próprio afirma: “Eis-nos condenados, órfãos que somos a perseguir um fantasma em reconhecimento de paternidade”.
Que avenidas são estas? São avenidas paralelas, de penumbra, colaterais, que nunca desembocam na verdadeira anagnórise ou (re)conhecimento da essência, da identidade, meros espaços de viagens interiores e perdidas do protagonista, por isso mesmo periféricas. “A Avenida da Ópera abria-se perante mim. Anunciava outras avenidas outras ruas que nos levariam daí a pouco aos quatro ponto cardeais. O meu coração batia um pouco mais depressa. No meio de tantas incertezas, os meus únicos pontos cardeais de referência, o único terreno que não me fugia debaixo dos pés, eram os cruzamentos e os passeios dessa cidade onde acabaria, sem dúvida, por me encontrar só”.

in http://cadernetaliterariadaanita.blogspot.pt/2015/04/as-avenidas-perifericas.html

Patrick Mondiano "Avenidas periféricas"

http://www.publico.pt/n1678923

O JARDIM ASSOMBRADO: FLORESTAS DE SÍMBOLOS

O JARDIM ASSOMBRADO: FLORESTAS DE SÍMBOLOS: Também para mim foi surpreendente - e gratificante - encontrar «ecos» do Onde Moram as Casas (ed. Caminho) numa passagem de Dom Casmurro...

ISABELA FIGUEIREDO LANÇA “UM CÃO NO MEIO DO CAMINHO”

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