"Não fosse o calor nem esta vegetação tão particular, não trouxesse o ar este vago cheiro a queimado, e Hans Mahrenholz dir-se-ia de volta a uma sua muito antiga vida. Hamburgo talvez, quando era criança e cruzou as desconhecidas praças dessa cidade levado pela mão grossa do pai, fustigados ambos por uma chuva miúda mas inclemente. Hamburgo, desta vez sem a mão que lhe abria os caminhos. Hamburgo às cegas. Não fosse esta luz crua que subsiste apesar da chuva e lhe castiga os olhos.
Recua ligeiramente para se proteger debaixo do avançado de lona riscada – velha e quebradiça, coçada pelo sol e pelo sal – e continua a observar com atenção a linha de costa. A maresia inchou-lhe os dedos, a ondulação provocou nele uma náusea leve e persistente.
A chuva desaba agora com fragor, formando manchas eriçadas na pele do mar (pequenas ilhas de inquietude na ampla superfície). Tem sido assim desde ontem, estes soluços molhados do tempo. Mais perto, a nova descarga salpica a balaustrada, as gotas escorrem como um óleo espesso no metal rugoso da amurada, alastram pelo convés.
A galera entra na barra, devagar. Chama-se Ferreira e ninguém tem razões para suspeitar de que esta será a sua última viagem à baía de Lourenço Marques. Para trás ficaram dias gloriosos em que, com o nome de Cutty Sark, foi a embarcação mais veloz a sulcar os mares do mundo, isso antes de ser adquirida pela firma Joaquim Antunes Ferreira & Cia., da cidade do Porto, e se tornar naquilo que é: uma embarcação cansada, merecedora das águas paradas de algum cais, enquanto peça de museu, mais que de confrontar assim o irascível mar Índico.
Mas não é por causa dessa glória – porventura inútil, neste momento nem sequer notada – que os burgueses encasacados acorrem ao cais apesar da chuva e do calor, unindo-se aos estivadores, marinheiros e vendedores que ali passam a vida, para formarem todos juntos a pequena multidão que espera; nem sequer pela imponência dos seus três mastros ou pela elegância do seu casco de madeira com mais de 90 metros de comprimento fora-a-fora. Estariam aqui mesmo que fosse outra embarcação qualquer, fazem-no sempre que uma vela ou um mastro assomam no horizonte, promessa de excitação trazida a uma cidade que no resto dos dias permanece modorrenta.
Por ora a Ferreira apalpa atentamente o canal que leva ao porto, passando não muito longe de um punhado de navios quietos, fundeados. Da amurada, o comandante Vieira de Sousa, há quatro anos no governo da galera, vai explicando aos seus cinco passageiros o historial de cada um desses navios: o Niassa, que foi Bulow antes de ser há dois anos capturado pelas autoridades portuguesas; o velho Admiral, glória da German East Africa Line, também ele obrigado a ser Lourenço Marques; e finalmente o Beira, nome pintado de fresco por cima de outro nome que ainda se consegue ler, por estar marcado em relevo leve na chapa negra do casco.
Herzog é o nome, e Hans Mahrenholz é percorrido por um estremecimento quando o consegue ler. Herzog. Não por causa da história que este velho navio também terá, as rotas que percorreu, os passageiros que transportou (entre eles um jovem de nome Fernando Pessoa em solitária viagem de regresso a uma pátria desconhecida). Herzog é o nome, palavra ducal que igualmente pode ser Herzig, Gertzog, Hertogs – e também Hertzog, como se verá – a raiz é sempre a mesma, a utilização é que foi variando, são as mesmas as armas com as cores amarela, azul e negra, as três estrelas, o elmo guerreiro e as asas imperiais. Herzog. E escurece ainda mais o humor de si já melancólico de Hans Mahrenholz, trazendo-lhe à ideia um outro tempo que vai ter de convocar.
Ondulam levemente, dóceis animais de carga retemperando forças gastas em intermináveis viagens. Herzog, murmura Hans Mahrenholz agora que o tem perto. Massa enorme projectando escura sombra sobre um mar de si já escuro.
Felizmente que tudo se torna mais leve com o lento avanço da galera, com as explicações do comandante e as exclamações dos restantes passageiros. São quatro: um jovem casal de missionários americanos e duas senhoras que o referido casal trataria com muito mais circunspecção se soubesse que não são quem dizem ser, esposas vindas para se juntar a supostos maridos, um deles engenheiro do caminho-de-ferro, o outro representante de uma companhia de recrutamento de indigenas."