segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Olho de Hertzog

Por cortesia do Diário Digital, eis um excerto do 1º capítulo do livro de João Paulo Borges Coelho, que ganhou o Prémio LEYA de 2009:


"Não fosse o calor nem esta vegetação tão particular, não trouxesse o ar este vago cheiro a queimado, e Hans Mahrenholz dir-se-ia de volta a uma sua muito antiga vida. Hamburgo talvez, quando era criança e cruzou as desconhecidas praças dessa cidade levado pela mão grossa do pai, fustigados ambos por uma chuva miúda mas inclemente. Hamburgo, desta vez sem a mão que lhe abria os caminhos. Hamburgo às cegas. Não fosse esta luz crua que subsiste apesar da chuva e lhe castiga os olhos.
Recua ligeiramente para se proteger debaixo do avançado de lona riscada – velha e quebradiça, coçada pelo sol e pelo sal – e continua a observar com atenção a linha de costa. A maresia inchou-lhe os dedos, a ondulação provocou nele uma náusea leve e persistente.
A chuva desaba agora com fragor, formando manchas eriçadas na pele do mar (pequenas ilhas de inquietude na ampla superfície). Tem sido assim desde ontem, estes soluços molhados do tempo. Mais perto, a nova descarga salpica a balaustrada, as gotas escorrem como um óleo espesso no metal rugoso da amurada, alastram pelo convés.
A galera entra na barra, devagar. Chama-se Ferreira e ninguém tem razões para suspeitar de que esta será a sua última viagem à baía de Lourenço Marques. Para trás ficaram dias gloriosos em que, com o nome de Cutty Sark, foi a embarcação mais veloz a sulcar os mares do mundo, isso antes de ser adquirida pela firma Joaquim Antunes Ferreira & Cia., da cidade do Porto, e se tornar naquilo que é: uma embarcação cansada, merecedora das águas paradas de algum cais, enquanto peça de museu, mais que de confrontar assim o irascível mar Índico.
Mas não é por causa dessa glória – porventura inútil, neste momento nem sequer notada – que os burgueses encasacados acorrem ao cais apesar da chuva e do calor, unindo-se aos estivadores, marinheiros e vendedores que ali passam a vida, para formarem todos juntos a pequena multidão que espera; nem sequer pela imponência dos seus três mastros ou pela elegância do seu casco de madeira com mais de 90 metros de comprimento fora-a-fora. Estariam aqui mesmo que fosse outra embarcação qualquer, fazem-no sempre que uma vela ou um mastro assomam no horizonte, promessa de excitação trazida a uma cidade que no resto dos dias permanece modorrenta.
Por ora a Ferreira apalpa atentamente o canal que leva ao porto, passando não muito longe de um punhado de navios quietos, fundeados. Da amurada, o comandante Vieira de Sousa, há quatro anos no governo da galera, vai explicando aos seus cinco passageiros o historial de cada um desses navios: o Niassa, que foi Bulow antes de ser há dois anos capturado pelas autoridades portuguesas; o velho Admiral, glória da German East Africa Line, também ele obrigado a ser Lourenço Marques; e finalmente o Beira, nome pintado de fresco por cima de outro nome que ainda se consegue ler, por estar marcado em relevo leve na chapa negra do casco.
Herzog é o nome, e Hans Mahrenholz é percorrido por um estremecimento quando o consegue ler. Herzog. Não por causa da história que este velho navio também terá, as rotas que percorreu, os passageiros que transportou (entre eles um jovem de nome Fernando Pessoa em solitária viagem de regresso a uma pátria desconhecida). Herzog é o nome, palavra ducal que igualmente pode ser Herzig, Gertzog, Hertogs – e também Hertzog, como se verá – a raiz é sempre a mesma, a utilização é que foi variando, são as mesmas as armas com as cores amarela, azul e negra, as três estrelas, o elmo guerreiro e as asas imperiais. Herzog. E escurece ainda mais o humor de si já melancólico de Hans Mahrenholz, trazendo-lhe à ideia um outro tempo que vai ter de convocar.
Ondulam levemente, dóceis animais de carga retemperando forças gastas em intermináveis viagens. Herzog, murmura Hans Mahrenholz agora que o tem perto. Massa enorme projectando escura sombra sobre um mar de si já escuro.
Felizmente que tudo se torna mais leve com o lento avanço da galera, com as explicações do comandante e as exclamações dos restantes passageiros. São quatro: um jovem casal de missionários americanos e duas senhoras que o referido casal trataria com muito mais circunspecção se soubesse que não são quem dizem ser, esposas vindas para se juntar a supostos maridos, um deles engenheiro do caminho-de-ferro, o outro representante de uma companhia de recrutamento de indigenas."






Os Íntimos

Partilho aqui um texto de Patrícia Reis, sobre este último romance de Inês Pedrosa, que estou a ler:

A consciência dos homens





Ser-se íntimo de alguém implica partilha. No caso das mulheres, como escreve Inês Pedrosa no seu último livro, é preciso que haja uma relação. As mulheres gostam de se relacionar, assim o afirma, a determinada altura um dos seus personagens, na página 23. A voz de Afonso: “ as mulheres gostam que tudo se relacione. Como se não pudessem existir sem relações”.





Em dezoito anos de vida literária, Inês construiu um património de personagens admirável, sendo que uma boa parte são mulheres. Pessoalmente, o livro “Nas tuas mãos” é aquele que me comove mais, é um livro sobre três gerações, três mulheres diferentes. Talvez por essa opção, escrever sobre a vida das mulheres, a Inês tenha sido alvo constante do cliché relativo à literatura dita feminina. Ora, a literatura, a boa literatura, não tem género. E isso a Inês sabe como ninguém. “Os íntimos” é um livro sobre sexo, sobre os homens, mas não recorre às imagens habituais, mergulhando a fundo na realidade que a escritora observa. Sim, porque uma das melhores características da escrita da Inês é o facto de pertencer ao seu tempo, ou seja, como escreve David Lodge - um escritor, critico literário e ensaísta britânico - não há nada melhor para espelhar a consciência do tempo do que a literatura. Inês tornou-se esse grilo falante de épocas infantis e escreveu um livro cuja proximidade com o leitor é quase inevitável. Isto só é possível porque, ao contrário de muitos, a escritora não está fechada na sua cápsula protectora, maturando a sua genialidade, considerando-se especial. A Inês acredita que é na fragilidade e no mundo que nos encontramos e percebemos.





“Os íntimos” são, assim, um retrato no masculino, contemporâneo, de uma certa geração de homens, dos seus tiques e manias, daquilo que os distingue das mulheres. Nós, mulheres, falamos muito sobre o que acontece na nossa vida, damos pormenores e choramos. Analisamos a nossa auto-estima. Os homens? Na página 15, Inês escreve, na voz de Afonso: “Um homem não tem de pedir que, por favor, lhe poupem a auto-estima. Um homem ri-se da palavra auto-estima. Auto-estima nem sequer é uma palavra: é uma adereço, um postiço de salvação”.





Os homens são íntimos de outra forma, entendem a intimidade como companheirismo. O futebol pode ser catalisador dessa intimidade. À volta de um plasma, de umas cervejas e de uns petiscos, os homens sentem-se bem na solidão acompanhada. Podem até viver entre si traições, amores cruzados, ambições desmedidas, mas são amigos porque são do Benfica, do Porto, do Sporting, porque partilharam o mesmo liceu, a mesma faculdade, o mesmo meio.





Na página 24, Afonso explica: “Não é para nos ouvirmos que nos encontramos – apenas para estarmos juntos. Cada um de nós é uma trave mestra da casa que somos todos juntos”. E, um pouco mais à frente, conclui: “Não esperamos nada de especial de cada um de nós. Não há decepções nascidas de ilusões desproporcionadas. Não há ilusões. Nem sombra dessa maçada incomensurável que se chama a análise da relação”.





O que fazem estes homens uns com os outros? São íntimos, sabem coisas uns dos outros, mesmo as indizíveis, têm medo, inveja ou admiração. Ao mesmo tempo, são a bóia de salvação, uma espécie de confraria de normalidade em que apostam uma vez por mês. Sim, porque este livro é centrado num jantar que acontece uma vez por mês. O pretexto é a morte de uma filha, mas não vou, como é óbvio, revelar a história. O que importa aqui é que o livro se dê a conhecer, se torne apelativo e cada um de nós, leitores, possa fruir da escrita da Inês Pedrosa, aprendendo alguma coisa ou, simplesmente, elaborando questões de vida que, até aqui, não nos ocorreram.





A escrita da Inês assume neste livro uma crueza que só revela a sua maturidade. O livro é o resultado evidente de muitos anos de convivência com os homens. Não se pode viver com eles, não se pode viver sem eles, costuma-se dizer. Uma coisa é certa, os cinco homens deste livro são homens comuns. Têm os seus mistérios? Sim e não são imunes ao feminino, pelo contrário. Por uma razão ou por outra, da filha à mãe, da ex mulher à mulher cobiçada, todos eles – Afonso, Filipe, Augusto, Pedro e Guilherme – moldam a sua forma de estar e viver conjugando várias facetas da sua vida no feminino. Para os mais atentos, “Os íntimos” releva ainda uma surpresa: o regresso de uma personagem de um dos best sellers da Inês, uma personagem do livro que se chama “Fazes-me Falta”.





Não acredito que os livros sejam melhores ou piores. Porque gosto demasiado da escrita para entender dessa forma simplista a equação da qualidade. Há quem tenha vivido a história da mulher e do homem de “Fazes-me Falta” com enorme intensidade. É um livro que marcou a história da literatura portuguesa, não tenho qualquer dúvida. Não vou desvendar segredos de um livro ou do outro, deixo-vos essa tarefa. Contudo, arrisco-me a dizer que “Os Íntimos” serão, a médio-longo prazo, entendidos e analisados, quem sabe se academicamente, como uma forma de ruptura. Porque existe neste livro uma escrita mais audaz, mais próxima da realidade, de um ideia de medo e de mortalidade, uma escrita que não obedece a estruturas narrativas formais e seguidas há anos. Há, se quiserem, uma ousadia. Conhecendo a Inês há tanto tempo, sei que “ousadia” é uma palavra de que gosta. Ao mesmo tempo, como sucede com alguns personagens, a ousadia é vivida a meias com o receio de não conseguir.





Uma vez, há muito tempo, a Inês disse-me que quando perdemos o medo é quando deixamos de fazer coisas interessantes e diferentes. Um dos seus personagens diz o mesmo, neste livro, sobre o exercício da medicina. Uma coisa é certa: “Os íntimos” revela uma nova Inês Pedrosa e isso, por si só, é bom, porque não podemos viver no passado, nem a usufruir das luzes de outra festa. Cada livro da Inês é um passo gigante, uma lição e, como disse no início, um reflexo da consciência do tempo que vivemos. Logo, uma festa maior.









(texto de apresentação do livro "Os Íntimos" ontem no Casino da Figueira da Foz)















publicado por Patrícia Reis às 00:06

O Delfim

Reli "O Delfim" de José Cardoso Pires e deixo aqui um apelo à sua leitura, através do clube de leitura do PNL.

"O Delfim, a obra de José Cardoso Pires, que foi publicada pela primeira vez em 1968, e cuja edição saiu ultimamente nas Publicações Dom Quixote, parece-me conquistar um lugar característico na produção literária portuguesa da segurada metade do séc. XX. Não é, com efeito, e de longe, uma obra vulgar, na medida em que esta narrativa de um crime (crimes que desde há séculos, como reflexo de avestruz, a humanidade insiste em pretender que não são perfeitos) cuja arma é o amor, desenrola-se de maneira, por assim dizer, irracional, ao ponto de sentirmos rapidamente a impressão são de sermos -- à procura da chave de um enigma - lançados num labirinto, sem termos tomado a precaução de segurar a ponta do fio de Ariane. Esta profunda reflexão sobre os temas do amor e da morte, parece ter sido voluntariamente concebida pelo autor como uma «estalagem espanhola», em que, sabêmo-lo, cada um consome apenas o que quis levar. É um brilhante exercício de estilo bastante impregnado das nostalgia do passado: «Antigamente, em tempos mais felizes ...». Página após página pressentimos o papel importante atribuído a uma lagoa da vizinhança.«Lagoa, para a gente de aqui, quer dizer coração, refúgio de abundância. Odre. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas da lei.». Esta lagoa - «que abundância e toda a abundância traz castigo» - enorme massa d'água que deveria ser berço de vida será, no caso, de instrumento morte. De passagem ‚ evocado problema da esterilidade: «Donde vem o mal que impede os frutos? Da esposa inabitável ou da semente que não tem força para viva dentro dela?».

À noite também é atribuído um papel importante: «De então em breve vai render-se à noite, que é a face comum do universo, aconchegar-se nela, preencher os buracos e as rugas com escuridão.». Vale a pena citar algumas linhas literariamente fundidas no bronze e consagradas a uma lagartixa: «Uma lagartixa parda. Imóvel, parecia um estilhaço de pedra sobre outra pedra maior e mais antiga, mas como todas as lagartixas, um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente. Pensei: o tempo, o nosso tempo amesquinhado.». «Como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompor», podemos ler no final da obra. Este belíssimo exercício sobre «a curiosidade, a terrível curiosidade» é, em suma, uma perfeita ilustração do que escreveu George Bemanos (1888-1948): «Vejo agora que cada crime criado à sua volta como uma espécie de turbilhão atrai invencive1mente para o seu centro, inocentes ou culpados, e de que ninguém seria capaz de calcular antecipadamente nem a força nem a duração.». Eduardo Prado Coelho, no seu prefácio a O Delfim, intitulado O Círculo dos Círculos, tem toda a razão em sublinhar: «Críticos e ensaístas procuram decifrar, mas o prazer do leitor vem desse informulável que fica EM SUSPENSO no corpo vivo do texto.». Este 1ivro que já foi editado no Brasil, em França, em Espanha,, na Alemanha, em Itália, na Pol6nia, na Checoslováquia, na Finlândia e na Roménia, honra as letras portuguesas."

BARADEZ, François, "O Labirinto", in Jornal Letras e Letras, Lisboa, n.º 45, 17 de Abril, 1991, p. 16

Rede de Saberes: José Cardoso Pires: O Delfim

ISABELA FIGUEIREDO LANÇA “UM CÃO NO MEIO DO CAMINHO”

https://youtu.be/qTt36ja7LOQ?si=Kjlj0eKp0zUYnBLY&t=168