domingo, 25 de agosto de 2013

Os livros que li de José Eduardo Agualusa


Só poderia estar a dizer que adorava os seus livros!


















A herança de Eszter



Lajos retornou após uma ausência longa. Apresenta-se, com os dois filhos, de repente, desenterrando o passado de Eszter que o tinha perdido para Vilma, a sua irmã.
Eszter, perdeu a mãe, a irmã e com a ajuda de Nunu, dos amigos Dendre e Tibor recuperou o que Lajos tinha destruído. 


"Naturalmente, todos sabíamos que Lajos ameaçava a minha vida, mais exatamente a vida de Nunu e os meus últimos anos de sossego. Só a casa se mantinha de pé, um pouco matratada pelo tempo, mas, ainda assim, poderosa; a casa, o último objeto de valor que Lajos ainda ainda não levara e que agora viera buscar. No preciso instante em que recebi o telegrama de Lajos soube que ele vinha por causa da casa; são coisas que não se exprimem por palavras  e, todavia, sabem-se. Até ao derradeiro momento, procurei iludir-me. Quer Endre quer Tibor sabiam-no."





Eszter, de Sándor Márai
Dom Quixote, 2006
Tradução de Ernesto Rodrigues
 págs.150

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Laços de família de Clarice Lispector

São treze contos:

Devaneio e embriaguez duma rapariga; Amor; Uma galinha; A imitação da rosa; Feliz aniversário; A menor mulher do mundo; O jantar; Preciosidade; Os laços de família; Começos de uma fortuna; Mistério em São Cristóvão; O crime do professor de matemática e O búfalo


Iniciei a leitura desta autora com este livro de que gostei.


Laços de família, de Clarice Lispector
Ed. Relógio d’Água
141 págs.

Recorri a um "site" brasileiro, abaixo mencionado para localizar a autora e a obra.




Bibliografia


Aos 19 anos, em 1944,  Clarice Lispector aparece com o livro   "Perto do coração selvagem", sendo acarinhada pela crítica.
Escreve:

- em 1946,"O lustre";
- em 1949, "A cidade sitiada"
- em 1960, "Laços de família" (contos);
 - em 1961 "A maçã no escuro";
 - em 1964, " A paixão segundo G.H." e "A legião estrangeira" (contos);
 - em 1969,  "Uma aprendizagem  ou o livro dos prazeres";
 - em 1971, "A felicidade clandestina" (contos);
 - em 1973, "A imitação da rosa" (contos);
 - em 1977 " A hora da estrela" .   
 É também autora de  livros de crónicas  e obras infantis, como "O mistério do coelhinho pensante", de 1967, "A mulher que matou os peixes", de 1969 e "A vida íntima de Laura", de 1974).

Biografia
De origem russa (nasceu numa cidadezinha da Ucrânia em 1925), Clarice Lispector, ainda criança, vem com a família para o Brasil onde se fixa (Nordeste inicialmente, e depois Rio de Janeiro). Sua formação intelectual e literária dá-se, pois, totalmente no Brasil. Casada com um diplomata (Maury Gurgel Valente), acompanha-o pela Europa e Estados Unidos onde nascem os seu dois filhos: Pedro (Suíça) e Paulo (Estados Unidos). De volta ao Brasil, separa-se do marido e passa a levar uma vida bastante isolada em seu apartamento, no Rio de Janeiro, ao lado do cão Ulisses, seu companheiro inseparável. A solidão, bem como a presença de animais, é um dos aspectos frequentes em sua obra. Em 1977, morre de cancro, um dia antes de seu aniversário, 9 de dezembro.
“Questões filosóficas profundas, como a verdade e a condição humana, estão colocadas nos romances, contos e crónicas de Clarice. Essa reflexão é sempre despertada a partir de um fato aparentemente banal, e jorra como produto incontrolável de um fluxo de consciência. A tomada de consciência pelas personagens de Clarice obedece muitas vezes a um ritual reflexivo, tortuoso e, até mesmo, doloroso. E é precisamente nesse momentos que a obra da autora se revela em toda a sua beleza e profundidade, embora isso incomode a visão estereotipada e pacata corrente na classe média urbana, onde ela preferia localizar suas personagens” (“Literatura Comentada”- Abril Educação).
Na ficção de Clarice Lispector, destaca-se a introspecção, que ao pé da letra, quer dizer visão para dentro, e é mais ou menos isso que vamos observar na autora: partindo da vida interior de suas personagens, preocupa-se a escritora “menos em desvendar-lhes o mecanismo psicológico dos atos que a própria razão metafísica do seu estar no mundo”. Partindo sempre de casos aparentemente banais (o leitor que lhe buscar apenas o enredo sairá certamente frustrado), a escritora se volta para o mundo interior das personagens, dissecando-as com a sua máquina de raios-X, fazendo-as divagar sobre o sentido de sua existência e sobre os eu estar no mundo. O resultado é extremamente doloroso e angustiante: a existência humana não tem sentido, se captada racionalmente. Só resta então uma solução: viver inconsciente e massificado, integrando-se nas estruturas e convenções que o mundo oferece, ou então marginalizar-se. É exatamente essa consciência do existir que “estabelece uma angustiosa dualidade na inteireza do ser” (José Paulo Paes).
Assim, é de notar-se que essa conscience malheuse, essa problematicidade da existência em face do universo, aflora nas personagens de Clarice Lispector, por via de um momento de iluminação intuitiva, por vezes de um incidente aparentemente trivial”, como aquela brusca freada que aparece em “Amor” e “Os laços de família”, a qual desperta a personagem para ver as coisas além da casca da rotina em que vive atolada. De um modo geral, todos os meus contos apresentam essa visão introspectiva. Outro exemplo é “O crime do professor de Matemática”, em que, ao enterrar um cão morto, ” o protagonista da narrativa se dá conta do que em si havia de culpa metafisicamente irresponsável” (José Paulo Paes).
É a partir daí que o iluminado se desprende dos laços convencionais da vida comunitária para viver, na nudez da autoconsciência, o seu drama existencial. Esse é o momento de introspecção, em que a personagem se desliga do mundo para se interiorizar no seu mundo e nas suas indagações metafísicas.
Depois tudo volta à normalidade, e a vida continua corrida e besta como ela é, pautada pela rotina e pelo artificialismo das convenções sociais.
Com relação aos contos de Laços de família, pode-se dizer que Clarice Lispector inovou, não apresentando aquela estrutura rigorosa que o conto tradicional requer como espécie literária. É que,, para o escrito pós-modernista, as regras têm função mais descritiva que normativa, embora os meus contos apresentem uma característica básica do conto como espécie literária: a concisão.
Como salienta o crítico Massaud Moisés, Clarice Lispector, com Laços de família, “deu ao conto sem ou quase sem enredo, uma dimensão nova graças à sua singular capacidade introspectiva”, e alguns deles, como “Os laços de família”, “O crime do professor de Matemática”, “Feliz aniversário”, “Uma galinha”, “O búfalo” e “A imitação da rosa”, consagram definitivamente a autora e acrescentam à literatura brasileira uma dimensão sobremaneira original e enriquecedora.
OS CONTOS DE LAÇOS DE FAMÍLIA: SÍNTESE E PROBLEMÁTICA
 Devaneio e embriaguez de uma rapariga

 O conto enfoca uma situação de fastio e tédio que envolvem as pessoas que se deixam enclausurar pela rotina da vida moderna, enjaulando-se no dia-a-dia de um apartamento.
Cenas vagas, aéreas, vão-se deslizando pela mente embriagada de uma rapariga – casada e mãe. Os devaneios são constantes. A realidade presente, concreta – rara – muito rara.
Densa angústia a deprime e comprime. Esmaga-a o dia-a-dia, sempre cercada das mesmas coisas e do mesmo afeto.
“— Ai que não me maces! Não me venhas a rondar como um galo velho!”(7). Enclausurada no seu mundo, esmagada pela rotina diária, nada lhe agrada: “Mas ela nem sequer a responder-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com carinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, contente, a vaga náusea”(15).
O protetor do marido passa-lhe pela mente. Roça-lhe o pé “por baixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele” (15). Tinha o direito e quebrar a rotina? “— Cadela, disse a rir”(16).
Tecnicamente, o conto é narrado sob a forma de um monólogo interiorizado – o que lhe confere em caráter nitidamente introspectivo.
Nem foi preciso dizer que a personagem é portuguesa: a própria linguagem se encarregou disso. É o que se pode depreender a partir do uso de certos vocábulos (“elétricos”, “miúdos”, “fato”, “peúgas”, “pasto” etc.); construções frásicas (“estava a se pentear”, “estivessem à casa”, “se mo permite”); uso do sufixo diminutivo – ito (“frecurazita”, “vestidito”, “dedito” etc); e uso do apóstrof em muitas expressões (“d’impaciência”, “d’enfeites”, “d’arte” etc).
 Amor
  Esquematicamente, diríamos que o tema deste conto é o mundo de rotina x cego (libertação).
“Amor” é semelhante ao conto anterior: está também sob o signo da rotina, onde a personagem vive sem refletir que há todo um mundo à sua volta, diferente a cada minuto, novo a cada momento. Ana é uma bem comportada mãe de família com filhos, marido e apartamento a cuidar: “Assim, ela o quisera e o escolhera”(19).
O seu mundo, porém, está prestes a desmoronar: o sossego de sua vida-agradável-burguesa dilui-se com uma freada brusca do ônibus e com um cego que mascava chicles. A partir daqui a insegurança domina-a, dilacera-a, e Ana se desprende da pacatez do seu mundo de rotinas: Ana já não era a mesma. Tem medo de perder o seu refúgio, de desmoronar o seu lar em que “tudo foi feito de modo que um dia se seguisse ao outro” (22) e em que “se podia escolher pelo jornal o filme da noite” (30).
Então tenta desesperadamente se reencontrar. Densa angústia: “Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa!”(27). Tenta desesperadamente se fechar, se enclausurar no seu mundo interior -–no mundo de sua rotina, “afastando-se do perigo de viver”(30).
Livre do cego que a faz enxergar o mundo que a rodeia e os anseios a que renunciara como esposa, Ana, nos braços seguros do marido, “sem nenhum mundo no coração”, deita tranqüila e em paz: ”Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia”(30).
 Uma galinha
 “Uma galinha” é um conto que mais parece uma crónica. Trata-se de uma galinha que foge à morte e ao almoço dominical de uma família. Perseguida pelo chefe-de-família, o bichinho “tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça”(32).
“Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada”(32). E, cansada de fugir, acaba sendo presa pelo perseguidor.
Mas definitivamente, aquela família não teria carne de galinha naquele domingo: “de pura afobação a galinha pôs um ovo”(33). E o chefe-de-família então decidiu:
“— Se você mandar matar esta galinha, nunca mais comerei galinha na minha vida!” (33).
E assim a galinha passou a “morar com a família”, até que seu convívio virasse rotina.
“Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos”(34).
Ela era sempre uma galinha – desde “o começo dos séculos”, e seria capaz de atuar sobre seu próprio destino e a sua própria condição galinácea.
Tendo, mais uma vez, o mundo restrito da pequena burguesia tradicional como pano de fundo, o conto volta a insistir numa temática básica de Clarice: “a alteração do cotidiano atuando profundamente nos sentimentos das personagens. É interessante observar que o próprio fato voltará a ser rotina e as pessoas esquecerão suas emoções”.
A imitação da rosa

 A realidade exterior, ou seja, o motivo de “A imitação da rosa” é aparentemente banal: Laura, a personagem central do conto, vê-se envolvida com relações rotineiras: jantar em casa de amigos, e, à espera do marido (Armando), hesita em enviar à anfitriã (Carlota) um buquê de rosas que comprara para si.
É nessa hesitação que o drama interior da personagem vai-se revelando: Laura revive um passado de angústias, imersas nas suas próprias reflexões, abandonada num mundo vazio, onde não há filhos em que a rotina e a normalidade eram um imperativo avassalador. Laura se angustia e se autoflagela com seus devaneios tortuosos de torturas.
A beleza das rosas revela a sua obsessão pela perfeição: “sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita”(50). E as rosas, que passam a representar uma presença no apartamento vazio, são suas: “eram lindas e eram suas” (49).
Tendo ainda como meta o perfeccionismo, outra obsessão sua é a ordem, o método, o detalhe: “seu velho gosto pelo detalhe”(40); “seu minucioso gosto pelo método”(36); enfim, “ magoava-a que Carlota desprezasse seu gosto pela rotina”.

 Feliz aniversário

 “Trata-se do conto mais irónico do livro. Por isso o mais mordaz, o que enxerga a vida com mais negativismo. Há um a perversidade implícita na forma da velhice e da vida. A rotina deixa de ser habitual para ser constante, existencial. E a ruptura dela é anual, vem de fora do mundo cansado que nos envolve, porque ele é nossa própria obra”.
O entrecho do conto, o seu ponto de partida, é um aniversário – aniversário de uma velha de 89 anos, que mora com a filha Zilda, a única que tinha condições de hospedá-la.
À noitinha, os filhos vão chegando, cada um mais superficial que o outro, o que a velha vai percebendo através do seu monólogo interior e seu aparente mau humor.
A superficialidade do tratamento fraternal, as rixas entre noras, as diferenças econômicas entre os vários irmãos, a educação diferente dos netos e bisnetos, os presentes imbecis e sem utilidades, s conversas vazias e forçadas, as aparências para “manter os laços” vão surgindo no conto e evidenciando a degradação da instituição familiar. Tudo isso deprime e escangalha a aniversariante, que, rancorosa, desabafa o seu ódio e a sua angústia:
“— Que vovozinha que nada!” explodiu amarga a aniversariante. “Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundos!”(68).
Depois todos se vão, e a aniversariante, quase nonagenária, permanece “sentada à cabeceira da mesa, ereta, definitiva, maior do que ela mesma… Será que hoje não vai Ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério”(75).
 A menor mulher do mundo

Um explorador francês (Marcel Prete) descobre na África Equatorial a menor tribo de pigmeus do mundo e, dentro dela, a menor mulher do mundo: um ser humano de apenas, 0,45cm de altura a quem batizou como a carinhoso apelido de Pequena Flor. E descobre o francês: Pequena Flor, bem como a sua tribo (likoulas) estavam na iminência de ser exterminados: os bântus vivam caçando-os com redes e devoravam-nos. Na longínqua África, um ser humano (embora de 0,,45cm…) estava em perigo de morte.
O achado foi publicado em jornal “onde coube em tamanho natural”(79). Mas, em vez de provocar sentimentos de piedade nas pessoas grandes, “a menor mulher do mundo” “causa sensacionalismo e uma curiosidade mórbida motivando diferentes reações: “aflição”, “perversa ternura”, “tristeza de bicho”. Em apenas uma criança de cinco anos, a reação é espontânea e sincera.
“— Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!”(80)
No conto, como é fácil perceber, a sociedade rejeita qualquer ser ou coisa que não se enquadra na sua estrutura convencional e preestabelecida: “Deus sabe o que faz”(86).
 O jantar

 É o primeiro conto em que a personagem principal é masculina.
Num restaurante, entra um velho esfomeado para jantar. Num outro canto, alguém lhe espreita e acompanha os mínimos movimentos, do início ao fim da refeição. Observa-lhe as indecisões, os gesto, as mãos peludas, e mesmo os dentes postiços. Procura captar-lhe “as profundezas”, “mas é inútil. A grande aparência que vejo é desconhecida, majestosa, cruel e cega” (91).
Aqui, mais uma vez, sobressai a temática freqüente de Clarice: pessoas que fogem dos meus sentimentos, escondendo-se sob uma casca dura através de si mesmas. Pessoas que, para fugirem da própria fraqueza, chegam à impessoalidade, à quase inumanidade. É o caso do velho, que, por trás da aparente tranqüilidade, certamente traz no seu íntimo um vulcão de problemas.
É exatamente isso que motiva a explosão de raiva de que é portador o narrador e observador do velho:
“Mas eu sou um homem ainda.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, eu perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer – eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue” (92-93)
 Preciosidade

Novamente uma figura feminina volta a ser a personagem central: uma estudante de 15 anos, que não era bonita, mas que trazia dentro de si uma preciosidade – algo “que era intenso como uma jóia. Ela”(95).
Introspectiva, tímida, medrosa, excessivamente pudica, ela se esconde de tudo e de todos, procurando passar sempre despercebida, utilizando um aparência sóbria e fria como seu único meio de defesa: “Estou sozinha no mundo” Nunca ninguém vai me achar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!”.
Este “estar sozinha no mundo” era a sua preciosidade. Até que um ida foi tocada e o mistério de sua preciosidade maculado por passos que a seguem na madrugada sombria e algodoada. Então passa a ser mulher e “ganhou os sapatos novos”(108): ela se enquadra na estrutura e convenções sociais.
Os laços de família

Aqui é mãe (Severina) e filha (Catarina) que não se entendem.
O genro (Antônio), casado com Catarina, completa o triângulo da rotina e do desamor, reaparecendo, plenamente, a temática fundamental de Clarice: “não esqueci de nada? Perguntava pela terceira vez a mãe” (109). Sim. Ela esquecera alguma coisa: o sentimento, o amor que não existe entre elas, “como se mãe e filha” fosse “vida e repugnância” (112). “Mas agora era tarde demais. Parecia-lhe (a Catarina) que deveriam um dia Ter dito assim: sou tua mãe, Catarina E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha” (113). Entre elas não havia mais sentimento. E, para perceberem isso, foi preciso, mais uma vez uma “freada brusca” que as despertasse. A rotina superficializada os sentimento; o enquadramento social exigira comportamentos pré-determinados, palavras necessárias e vazias de significado; entre elas só havia palavras carregadas de atrito, de desencontro, de monotonia e irritação.
No seu apartamento, onde “tudo corria bem”, trancado nas quatro paredes do seu “Sábado”, o genro lê indiferentemente:
“— Catarina, esta criança ainda é inocente!”
Por trás dessa situação está uma verdade terrível: ou viver dentro da rotina ou quebrá-la, provocando neste último caso, o caos, o colapso, o pânico: o desvendamento de uma verdade monstruosa; verdade esta tão gritante, tão caótica, que ameaça a ruína completa. A única solução, então, “o único refúgio é a remodelação paciente da rotina, para que a verdade novamente seja contida: a fuga eterna dos homens de si mesmos!”
“— Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem (120).
Com relação à técnica, é curioso observar como a autora realça os olhos de Catarina: analisa-a pela expressão dos seus olhos, porque os olhos, sem dúvida, são a janela da alma.
 Começos de uma fortuna

Aqui são colocados dois problemas que aprecem ser responsáveis por grande parte das angústias, desequilíbrios mentais e crimes da atualidade: o dinheiro e a falta de comunicação dentro do próprio lar. Na sociedade moderna, dita “de consumo”, o homem tece um mundo de sonhos e aspirações “totalmente” impossíveis sem o dinheiro que ele, na maioria das vezes, não tem. Só se lhe apresentam duas saídas: ele toma emprestado e vai-se envolvendo em dívidas sempre maiores: “Mas depois eu tenho de devolvê-lo a você e já estou devendo ao irmão de Antonio”(126), ou perde-se em conjectura: “se eu tivesse dinheiro… pensava Artur”(121). Artur, menino ainda, dá os primeiros passos na construção do que será um dia a sua fortuna: talvez uma dezena de quimeras, talvez centenas de promissórias.
“Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas; papai, como são promissórias?” (129).
Artur vai aprendendo as manhas da vida e das pessoas: “Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você Ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima” (126).
As circunstâncias vão crescendo em importância, a necessidade de ser aceito se impõe, e Artur, “… à porta do cinema não pode deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga”(127).
Dentro do lar, sua mãe, entregue demais às obrigações, não entendia seu problema: “A mão olhou-o seca como a um estranho, No entanto ele era mais parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família”(122).
Patenteia-se neste conto, como em outros, também a situação dramática da mulher dona de casa, esposa e mãe, associada ao fogão e a trabalhos domésticos, sem outra função que a de procriar e aprontar roupa e comida para os hóspedes: marido e filhos.
“Coma mais batatas, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si”(129).
Mas eles estavam perdidos sem seu mundo, falando de promissórias.
“Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você tenha uma dívida”(129)
 Mistério em São Cristóvão

Neste conto, podemos observar tendências surrealistas. Clarice explora o subconsciente construindo uma simbologia complexa e difusa. A partir do próprio título, verificamos, de certa forma, o caráter velado do acontecimento. O caso se dá numa noite de maio, em casa de uma família onde “as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios, a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa, a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade (19 anos), e a avó atingiu um estado!”(132). Nessa noite, após cada um ir se deitar, seguindo os padrões de uma vida sem graça, sem novidades, tem lugar o episódio: três mascarados, um galo, um touro e um demônio, invadem o jardim da casa para colher jacintos. “Um jacinto para pregar na fantasia” (133). O intuito dos três não é consumado porque descobrem o rosto da jovem olhando-os justamente quando haviam quebrado a haste de uma das flores.
“Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão. Paralisados eles se olhavam” (134).
“Um galo, um touro, um demônio e um rosto de moça haviam desatado a maravilha do jardim…” (135).
Algo aconteceu entre estas quatro criaturas, algo que as perturbou profundamente, algo que quebrou a rotina maçadora de suas vidas comuns. No jardim, por instantes, os quatro se fixaram, e algum mistério de não sei onde, se fez ou desfez. No entanto, “era um toque perigoso para as quatro imagens” (135).
Pressentindo o perigo, os três mascarados fogem, e a moça grita. A família volta sua atenção e cuidados para a mocinha cuja única expressão fora o grito, e, entre seus cabelos, apareceu um fio branco. Por instantes, a família, com exceção das crianças, se preocupa com o fato. De alguma forma o acontecimento os toca, e eles se tornam “atentos e inquieto?. “A mocinha já não vivia a perscrutar” (136), e tudo aos poucos volta ao de sempre: “…a avó, de novo pronta a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis…” (137).
Tal como nos contos “Os laços de família” e “Amor’, onde a freada do táxi e a arrancada do bonde representam momentos de tomada de consciência, aqui, em “O mistério de São Cristóvão”, o momento crucial se dá quando há o grito da moça, sinal de uma dor e de um espanto que se sucedem à experiência mágica que interrompe o fluir monótono dos dias sem sentido.
 O crime do professor de Matemática

Este é outro conto que apresenta uma personagem masculina no papel principal. Trata-se de um professor de Matemática que encontra um cachorro morto numa esquina e resolve enterrá-lo, buscando, com isso, punir-se pelo fato de ter abandonado seu próprio cão numa outra cidade. Após fazê-lo, o professor sente-se livre e começa a pensar no seu cão. Assim, através de um monólogo de grande beleza e profundidade, Clarice vai deixando suas pinceladas de filosofia de vida: o cão (José) pertencera desde filhotinho ao professor de Matemática e juntos haviam brincado e se entendido. No entanto, o que não permitiu a continuidade deste relacionamento foi uma exigência do cão: “De si mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem” (144).
O professor, incapaz de cumprir tal requisito, escolheu abandonar o cão, e, com ele, a preocupação de procurar satisfazer a exigência. Abandona-o com alivio.
“Com alivio sim pois exigias com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heróico – que eu fosse um homem” (145).
O monólogo prossegue e a lucidez do professor vai aumentando. Ele conclui que, na verdade, cometera tal crime por ser uni “crime menor”, pelo qual “ninguém vai para o inferno”. Ninguém poderia condená-lo por ter somente largado um certo cão à sua própria sorte. Ao ver o outro cão, porém, o professor sente que deveria compensar sua atitude. Lembramos aqui a “lei da equivalência das janelas” ou “lei da compensação moral”, explicada em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, através da qual o homem busca sempre justificar seus atos ou idéias com outros atos e idéias. O processo de aclaramento da visão interior continua e o professor reflete que talvez “o cão abandonado exigisse dele muito mais que a mentira”, exigisse que ele ‘fosse um homem – e como homem assumisse o seu crime” (147). Premido por este raciocínio, o professor desenterra o outro cão que há pouco enterrara e volta para a sua casa, a sua família. Cremos perceber no José o chamamento para um exercício consciente de uni papel – o papel de HOMEM -, ao qual os homens quase sempre querem fugir. José é tudo aquilo que nos impele à atitude, nos exige um parecer, nos lembra da vida. Se o professor tivesse compensado o seu crime com o enterro de outro cão, ele estaria se esquecendo do chamamento do próprio intimo para a realização como HOMEM.
 O búfalo
A exemplo de “Os laços de família”, temos aqui uni conto de grande intensidade dramática. Focaliza uma mulher infeliz no amor, rejeitada pelo homem a quem só sabe amar e “cujo crime único era o de não amá-la” (151).
Esta mulher trazia no peito, “que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a secreta vontade de matar, a necessidade de odiar “(155).
“Onde aprender a odiar para n~2’o morrer de amor? E com quem?” (155).
A mulher vai ao jardim zoológico na tentativa de aprender com os animais este sentimento que procura, mas, como é primavera “o mundo das bestas se cristianiza em patas que arranham mas não dói…” (155).
Presa de si mesma, enjaulada no seu amor, ela tudo enxerga transbordando AMOR. Até que viu o búfalo negro ao entardecer. Seja pelo cansaço, por ser pôr-
-de-sol, por ele ser grande e negro, seja pelo que for, o fato é que o búfalo a faz sentir o que buscava: “a vontade vagarosa de matar”, o ódio, enfim. E copiando a tranqüilidade nervosa do bicho, ela pode dizer: “Eu te amo”, com ódio. O conhecimento do ódio de certo modo a faz morrer um pouco e ela cai, perto da cerca do búfalo guardando a imagem de contornos suaves e duros, olhos pequenos e calmos.
O ESTILO DE ÉPOCA
A obra de Clarice Lispector se localiza na terceira fase do Modernismo, que muitos preferem chamar de Pós-Modernismo.
1) Como é próprio dos autores (pós)-modernistas, a maneira de fazer literatura de Clarice Lispector marca-se pela originalidade e pelo modo anti-convencio-nal com que organiza o texto. O autor (pós)-modernista, e especialmente Clarice Lispector, sempre foge das convenções estabelecidas e da linguagem estereotipada, o que, aliás, já vai expressando o conteúdo temático de sua obra – tirar a máscara das formalidades e revelar a verdade subjacente em cada uni.
2) Coerente com essa postura do autor (pós)-modernista, é freqüente nas obras desse estilo de época o emprego da técnica surrealista, em que a narrativa vai brotando à mercê do fluxo da consciência do condutor da estória.
Essa visão surrealista que perpassa alguns dos contos pode ser notada sobretudo em “Amor” (a imagem do cego a perseguir a personagem, a necessidade que Ana tem de amar o cego representa bem sua ânsia de se entregar ao seu mundo obscuro e desconhecido) e em “Mistério em São Cristóvão” (a coincidência fatalista que envolve aquelas “quatro máscaras” numa noite de magia).
3) Nessa linha de raciocínio, as obras (pós)-modernistas, concebidas e elaboradas à maneira surrealista, sempre provocam discussões e polêmicas por porte do leitor. É a concepção da obra aberta, sujeita a interpretações várias, em que o autor não entrega o produto mastigadinho – pronto para ser consumido.
Como ressaltam Youssef-Abdalla a propósito da obra da autora, em “Lite-ratura Comentada”, “Clarice respeita o seu leitor, por isso ela cria, na viagem de suas personagens, um novo espaço de liberdade, dentro do jogo ficcional. É um jogo onde todos – narrador, personagens e leitor – devem participar de forma ativa”. Laços de família sem dúvida, enquadra-se perfeitamente nessa concepção de obra aberta.
4)A realidade brasileira, em que sempre se embasa a literatura modernista, pode ser detectada em Laços de Família em que traços da nossa cultura podem ser vislumbrados.
Essa aparência brasileira, entretanto, é altamente enganosa no livro como, aliás, em todos os grandes autores (pós)-modernistas. O homem aqui é visto como ser humano na sua dimensão universal: é o homem moderno, de qualquer espaço, alienado e esmagado pela rotina, descaracterizado e perdido no anonimato dos grandes centros urbanos.
5) Embora correta, apesar das inovações, a linguagem de Clarice Lispector, como é comum no (Pós)-Modernismo, apresenta traços da linguagem coloquial em que as normas morfo-sintáticas não são observadas. Isso, evidentemente, faz sentido, pois o que a autora pretende é adequar a linguagem à personagem, fazendo o registro do seu modo próprio de falar.
ESTILO / LINGUAGEM


A maneira de escrever de Clarice Lispector é bastante coerente com o seu
modo de ser e com o estilo de época em que se enquadra. Como já observamos, a
forma de expressão utilizada por ela – original e desestereotipada – revela bem o
conteúdo temático apresentado.
1) Clarice Lispector não se preocupa em contar uma estória. Sua preocupação maior é com as impressões, como ela própria observa: “os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”.
2) “Rompe-se assim a narrativa referencial ligada a fatos e acontecimentos. Em lugar dela, emerge uma narrativa interiorizada, centrada num momento de vivencia interior da personagem (ou narrador)” – observam Youssef- Abdalla, em “Literatura Comentada”. O seu estilo, pois, – que lembra Machado de Assis – é arrastado, anda devagar, porque a sua preocupação é desvendar a verdade subjacente em cada um, mascarada pela casca da rotina.
3) Essa tendência para a introspecção gera, em Clarice Lispector, um certo cerebralismo manifestado através da linguagem paradoxal, mais em nível do pensamento e da idéia. É uma literatura de reflexão, que exige do leitor muito esforço para entender e desvendar o mistério que envolve aquilo que a autora quer transmitir. Essa postura da autora está evidentemente bem coerente com a concepção de obra aberta da literatura (pós)-modernista.
4) Outra preocupação da autora é casar forma com conteúdo. E o que observa a dupla Youssef-Abdalla: “É admirável sua consciência técnica adequando forma e conteúdo. Por exemplo dissocia as unidades narrativas para mostrar a falta de ligações mais profundas na sociedade. Organiza a narrativa em ritmo lento, para contrastar com o movimento da vida nas grandes cidades. Filtra todos os fatos através de uma consciência que se isola do conjunto – eis ai a solidão do homem moderno”.
5) Como ressalta o crítico Luis Costa Lima, “a linguagem de Lispector contém como que uma armadilha: a sua simplicidade enganosa, podendo dar ao leitor a impressão de uma planura sem fim, de uma superfície horizontal”. Eis outro elemento básico para a compreensão de Clarice. Não se iluda o leitor: por trás dessa aparente simplicidade lingüística muitas verdades dolorosas se escondem: “toda a clareza tem seu reverso e mesmo na coisa comum podemos condensar perguntas que não se desejam”.” Para que conto mais simples do que “Uma galinha”? Entretanto, por trás daquela história, muitas verdades se escondem.
É curioso observar aqui que essa linguagem comum, revestindo aparente-mente um desenrolar de ocorrências, “é um correlato, ao nível da linguagem, da opacidade do mundo” (Luís Costa Lima).
6) Outro aspecto que marca bem o estilo de Clarice Lispector é a sua tendência para os seres frágeis e irracionais – próximos do “coração selvagem”. Essa busca, que remonta “ao mundo pré-vegetal anterior aos símbolos e à cultura”, esta bem coerente com a profunda introspecção que configura suas obras. Dessa forma essa “simplicidade enganosa” mascara problemas existenciais, subjacentes no recôndito do homem. O que a autora pretende é exatamente desvendar o mistério que se esconde sob essa casca de simplicidade.
7) Mascaradas pela rotina do dia-a-dia, suas personagens sempre têm, como observou o poeta Affonso Romano, um momento de “epifania”, “quando acontece um evento ou incidente que ilumina a vida da personagem”.
8) Coerente com essa tendência, a obra de Clarice Lispector é povoada de “bichos”: cavalo, galinha, barata, aranha, búfalo, gato, cão etc. Essa presença revela bem a sua busca do “coração selvagem”, irracional, que configura um mundo de harmonia, sem a complicação do mundo dos homens.
9) Embora se expresse em prosa, como é próprio do conto, a linguagem de Clarice Lispector caracteriza-se, freqüentemente, pela “liricidade”. Revela-o não só pela marca pessoal que imprime nas suas criações literárias, como pela riqueza metafórica. Suas metáforas, expressivas e poéticas, primam pela originalidade.
PERSONAGENS
Quase todas as personagens dos contos são femininas; excetuam apenas “O jantar” e “O crime do professor de Matemática”, onde a personagem central é masculina. Sem dúvida, isso tem uni sentido na obra: a rotina é o principal tema dos contos de Clarice, e ninguém mais do que a mulher é vitima do dia-a-dia da existência.
De um modo geral, suas personagens são seres fracos, desajustados, frustrados, que se escondem por trás de uma casca que os envolve de náusea e angústia – autênticas personagens-ostra. Quase sempre têm um momento de lucidez, despertando-se da rotina que as cega e esmaga, quando se revelam frágeis e inseguras. A única solução, então, é refugiar-se na rotina, onde se escondem das próprias fraquezas, ambições e frustrações. Não passam, pois, de meros fantoches, pois lhes falta integração psicológica e liberdade de escolha: são seres destituídos de autodeterminação, que movem conforme as imposições e convenções familiares e sociais. Por essa razão – porque lhes falta vontade própria e autodeterminação -pode-se dizer que não têm completa consciência das coisas nem liberdade de ação:
vivem esmagadas pelas grades da rotina e da inconsciência, parecendo mais
‘figuras de pensamento que entes humanos” (Luís Costa Lima).
Invariavelmente, pertencem à família urbano-burguesa-tradicional, onde esta nítida a decadência 
dos valores sociais e familiares. Nesse contexto, o aparta-mento é unia presença constante, onde quase sempre vivem com “a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”. Os “laços”, que envolvem o titulo e a maioria dos contos, não passam de uma tremenda ironia, o que não deixa de estar coerente com a casca de suas personagens-ostra: os “laços” são apenas aparentes e mascaram o artificialismo do relacionamento humano.
TÉCNICA NARRATIVA
Com relação à técnica empregada por Clarice, é importante ressaltar aqui o monólogo, elemento predominante do conto de Clarice Lispector, conforme observa Adornas Filho, no artigo “O conto e o monólogo”.
Sem dúvida, o monólogo é uma decorrência da introspecção, em que a personagem se revela de dentro para fora, mostrando-se mentalmente, numa total desarticulação com o real.
Outro recurso técnico que deve ser anotado também é a “sensação de pintura” que prevalece nos seus contos: a narrativa é sempre feita através de observações visuais. Uni exemplo nítido, nesse sentido, é o conto “Os laços de família”, onde os olhos de Catarina têm destaque especial.
A narrativa quase sempre se “quebra” por um momento de lucidez da personagem, o que constitui unia espécie de clímax do conto. Depois tudo volta à normalidade, quando, quase sempre, se percebe a problemática apresentada.
CONCLUSÃO
Num conjunto de treze contos, Clarice Lispector nos apresenta o retrato de uma época: a nossa. Através de uma linguagem cuidadosamente empregada, ela vai levando-nos pelos caminhos de sua sensibilidade a identificar as mazelas e a deterioração de nossas estruturas e valores. O livro enfoca e fotografa o desmoronamento de todo um complexo de instituições, fórmulas e convenções sociais; a coisificação do homem, mero espectador de sua própria tragédia animal, “fechado entre as quatro paredes de seu sábado”, preso nos apartamentos frios e impessoais, onde tudo vai bem, enquadrado no esquema da maioria inócua e ridícula.
O homem acovardado, medroso do próprio destino, apagado, restrito às atividades básicas de conservação e defesa.
O homem que é levado, que não quer tomar conhecimento de sua alienação, e, se por acaso isso acontece, recusa-se a tomar qualquer providência.
O homem mascarado, insensível, forjando atitudes, idéias e sentimentos, a titulo tão somente de verniz.
O homem hóspede de sua própria casa, ignorante de suas possibilidades, forasteiro em sua própria terra.
Através de uma colocação muito bem feita, Clarice Lispector aponta a situação dramática da mulher dentro da estrutura social vigente: “a m7e trabalhou durante anos nos partos e na casa” (131). A mulher se cansa, se enfara, se empanturra dessa vida de momentos iguais e insípidos. E que pode o indivíduo fazer ante o mundo? Ou ele se enquadra, se amolda e se torna a mãe desvelada, a esposa perfeita, o funcionário-padrão, e é aceito pela sociedade; ou ele não se enquadra, e é rejeitado como Pequena Flor, por ser diferente. Após o enquadramento só vem a rotina que, se quebrada, traz angústia; se mantida, traz fastio.
É assim que o homem, fechado no abraço-prisão de seu próprio comodismo, vai enfraquecendo, puindo, soltando, destruindo os laços que o unem à própria vida. Estruturados sobre unta base de artificialismo, fingimento e interesses, não podem subsistir e se desmancham. Os laços de família tão tênues, tão frágeis e tão corroídos que atestam a desestruturação de uma sociedade doente.
Os homens vêem a “opacidade do mundo”, o vazio e a gratuidade da existência, a falta de justificativa da vida diária, a banalidade e estupidez de seus dias vividos na base de ilusões e convencionalismos, mas, na certeza da angústia como decorrência da conscientização, preferem ficar “cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos” (28).
NOTA: As páginas indicadas referem-se à 5ª edição de Laços de família (Editora Sabiá).
Prof. Teotônio Marques Filho (com a colaboração da Profa. Deisa Chamahum Chaves)

Divórcio em Buda


Este romance de Sándor Márai que se lê de um só fôlego, retoma temas recorrentes como a origem de classe das personagens, a sociedade em decadência, nas vésperas da II Guerra, uma relação entre três pessoas, casamentos que têm tudo para dar certo mas que anunciam num ou noutro cônjuge um mal estar permanente e introspetivo, uma insatisfação.
Há um prenúncio de tragédia, nas vertigens do juiz Kristof Komives, na agitação das crianças e do cão antes do aparecimento do médico Imre Greiner.
A ação passa-se durante um dia e uma noite.
Da pergunta que Greiner faz ao juiz "Sonhaste com Anna nestes anos?" emerge toda a tragédia da morte de Anna que jaz no seu apartamento.


Divórcio em Buda, de Sándor Márai
Dom Quixote, 2010
Tradução de Ernesto Rodrigues
184 págs.

terça-feira, 30 de julho de 2013

A leitura de "A Mulher Certa" de Sándor Márai


Neste livro há uma triangulação amorosa que aparece também em "As velas ardem até ao fim" e em "Divórcio em Buda", "A herança de Eszter" e "A ilha". E a interrogação sobre o sentido da vida e da decisão sobre a própria morte.
Há uma referência às origens sociais de cada uma das personagens - a burguesia, a pequena nobreza aristocrática e o povo protaganizado pela Judit.
O livro tem três partes e um epílogo. O narrador de cada uma das partes é uma das personagens principais (Marika, Péter e Judit).
Destaco uma componente autobiográfica na caraterização de Lázar, o amigo escritor  e Judit.

É, no entanto, esta reflexão que me atrai:

"...Precisei de vários anos para compreender que existe uma espécie de direito que não foi estabelecido pelos homens, mas pelo criador. eu tenho o direito de morrer sozinho, compreendes?...

...

"Primeiro, a solidão torna-se difícil, como uma condenação. Há horas que julgarás insuportáveis. E talvez fosse melhor  partilhá-las com alguém, talvez essa grave condenação ficasse aligeirada, se a partilhasses com um qualquer, com um camarada qualquer, com um camarada indigno, uma mulher desconhecida.  Há momentos que são momentos de fraqueza. mas passam, porque a solidão também te abraça lentamente, a exemplo dos misteriosos elementos da vida e do tempo, em que tudo acontece. subitamente compreendes que tudo aconteceu no tempo certo..."

...

"Quando isso sabes, e já mais nada esperas dos homens, nem esperas ajuda das mulheres, conheces o preço do sucesso e as terríveis consequências do dinheiro e do poder, quando, doravante, mais nada queres da vida do que te retirares para um buraco, sem companhia, ajuda e comodidades, e ficar à escuta do silêncio que, a pouco e pouco, começa a ressoar também na tua alma, como nas margens do tempo... então, tens direito a partir. Porque esse é um direito teu.
Cada ser humano tem direito a preparar-se, sozinho, num silêncio claustral, para o momento em que vai dizer adeus ao mundo, e para a morte."

in páginas 205 a 207


A Mulher Certa, de Sándor Márai
Dom Quixote, 2007
Tradução de Ernesto Rodrigues
418 págs.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

A mulher certa de Sándor Márai

Em 1941, Sándor Márai publicou As Igazi/A Mulher Certa, obra composta apenas pelos dois primeiros monólogos; mas para a edição alemã, em 1949, junta-lhe o monólogo de Judit, o terceiro vértice do triângulo amoroso em que é centrada a trama. Mas esta terceira é reescrita em 1980, sendo-lhe então acrescentado o epílogo. A presente edição inclui as quatro partes do romance, embora não fosse de todo descabido acrescentar-lhe à laia de subtítulo, Judit e um epílogo, o título introduzido pelo Autor na versão de 1980. Um romance de vulto, composto por três longuíssimos monólogos e um epílogo. Três pontos de vista diferentes a juntar as peças que formam o mapa dos acontecimentos que servem de base para a construção da história. O remate final é-nos apresentado pelas conclusões relatadas no epílogo, no qual é introduzido um quarto narrador que não participa directamente nos acontecimentos: Lajos, o amante de Judit.



A primeira parte – Marika



O romance inicia com a descrição de um ambiente de prosperidade, no interregno entre as duas Grandes Guerras do século XX: uma elegante pastelaria onde se observa a rotina de uma elite que desaparecerá no espaço de duas décadas. Sentada discretamente a um canto, Marika relata a uma amiga de longa data e à qual já não vê há algum tempo, uma história de desamor, a qual acabou por fazer ruir um casamento aparentemente perfeito. Todos os dias à mesma hora, espia discretamente o ex-marido que vem todos os dias àquele lugar e, todos os dias, faz a mesma compra. No entanto, naquele dia Péter compra casca de laranja cristalizada para a nova esposa, algo que não passa despercebido à ex-mulher. Marika observa-lhe, de forma quase que obsessiva, os movimentos e gestos rituais, sempre do mesmo ângulo de visão: a mesa do canto naquela pastelaria, ao fim da tarde, logo que este sai do emprego, na vã tentativa de compreender a falência de uma relação com tantas fragilidades quantas aquelas existentes na estrutura do próprio Império.


Marika é pródiga em detalhes no relato que faz à amiga, traduzindo a forma como a expressão de duas sensibilidades diferentes se chocam, devido a formas diferentes de entender e vivenciar o amor. Esta diferença resulta de personalidades divergentes, estruturas segundo diferentes representações mentais, em que a possessividade no amor, de um dos lados, se torna incompatível com a reserva e a ânsia de liberdade, do outro. Marika dá-nos a conhecer uma história de duas pessoas habituadas a viver de forma diametralmente oposta, desde a organização do próprio quotidiano que é moldado por formas de socialização condicionadas pelas convenções subjacentes ao respectivo nível socioeconómico de cada um. No entanto, trata-se apenas de um dos lados deste triângulo. Um ponto de vista pessoal, osbservado, metaforica e literalmente, de apenas um dos cantos da pastelaria.

Sándor Márai possui o mérito de traçar o perfil psicológico de cada uma das personagens de forma exaustiva e minuciosa e relacioná-las com o ambiente socioeconómico e cultural onde estas se desenvolvem, característica que manifesta em todos os seus romances. Ao leitor cabe o papel de ouvinte, de receptor conjuntamente com a inlerlocutora. Esta, no entanto, desempenha um papel não propriamente passivo, mas mais o de um entrevistador não-directivo, tal como o terapeuta num consultório de psicoterapia.


Marika deixa quase sempre transparecer um ciúme obsessivo e excessivo, que deixa transparecer nos gestos e nas frases que vai soltando, misturadas com uma boa dose de insegurança, algum orgulho e sentimento de posse, deixando o leitor adivinhar até que ponto a personalidade da narradora contribuiu para a asfixia da relação.


No discurso de Marika, Sándor Márai dá a entender que a maternidade, a beleza, o refinamento, a sedução não são elementos suficientes para sustentar uma relação que transporta consigo algumas fissuras estruturais.


O aparecimento de uma figura do passado na vida de Péter é apenas o golpe de misericórdia numa relação que já vem a definhar há muito tempo. Marika poderia até ser A Mulher Certa. Mas os seus medos, a insegurança doentia que manisfesta acabam por deitar tudo a perder. No passado de Péter existe um abismo que contém algo de telúrico e vulcânico e que o atrai fatalmente, como chega a intuir Lázar - escritor de sucesso e amigo do casal com quem Marika antipatiza no início da vida de casada, talvez por suportar com dificuldade o olhar crítico e um conhecimento da vida anterior do marido à qual não consegue aceder e que está convencido ser de natureza nefasta, se não mesmo destrutiva.


Ao longo do romance e sobretudo nos capítulos seguintes, Sándor Márai empenha-se em mostrar que as paixões podem até não se concretizar mas a memória não permite que desapareçam. Projectando-se ora na figura de Péter, ora na figura de Lázar que são duas fases diferentes do seu “eu” o Autor, herdeiro simultaneamente do Romantismo, defende o argumento de que as almas apaixonadas são orgulhosas e sofrem muito. A confirmar esta hipótese a citação de Marika deixa pouca margem para dúvidas ao recordar o temperamento artístico do marido que dizia ser “um artista que ainda não encontrou o seu género. Entre os burgueses isso é frequente. Quando é assim, extingue-se uma família.”


Em relação a Lázar, Marika tem, também, sentimentos dúbios de atracção e repulsão, já que o escritor é a negação da faceta de burguês do marido:


Sentia-se à sua volta a solidão de quem vive no Pólo Norte. Solidão e serenidade, uma triste serenidade, subitamente compreendia que aquele já não desejava mais nada, nem felicidade, nem êxito, sim, e talvez, nem sequer escrever, mas só conhecer e compreender o mundo. Estava careca e sempre com o ar de quem educadamente, se aborrece um pouco. Mas havia também nele algo de monge budista, um pouco do olhar oblíquo de quem olha o mundo e não é possível saber-se o que pensa.


As duas “almas” apaixonadas que mais sofrem são precisamente Marika e Péter, os narradores da primeira e segunda parte.


Em relação a Judit, Marika descreve-a como dona de um rosto de uma beleza fatal, “perigosa como um felino de grande porte, orgulhosa e sem piedade (...) Era um rosto liso e implacável. Que não aguentava cumprimentos fáceis, nem suportava sorrisos adocicados.


Judit aparece como uma ameaça para Marika, pela sua paciência e perspicácia, ao esperar o momento certo para atacar de emboscada.



Segunda Parte - Péter



A segunda parte consiste na exposição do ponto de vista de Péter. Nela, o Autor explora a mentalidade burguesa, ou melhor, da alta burguesia ao esmiuçar o comportamento e as motivações do burguês rico de há várias gerações, isto é, não colocando em evidência a vulgaridade e o exibicionismo do novo-rico, mas, à maneira da escritora norte-americana Edith Wharton, do princípio do século XX, a forma como os “grandes senhores” que, não sendo aristocratas, têm de provar a toda a hora e em cada gesto, que são grandes senhores, capazes de desempenhar o seu papel na perfeição. Mas ao contrário de WhartonMárai não se limita a mostrar as atitudes das personagens: explica-as detalhadamente ao fundamentá-las em razões de carácter psicológico, cultural ou social. E no caso de Péter as atitudes são formatadas a partir de uma forma de viver que acabará por se revelar um autêntico colete-de-forças ao limitar e constranger a sua liberdade individual de Péter e dos que o rodeiam.


Mais do que um aristocrata, o burguês é muito sensível a estas tonalidades. Até à hora da morte, o burguês precisa de se afirmar. O aristocrata, ao nascer, já mostrou o quanto vale. O burguês está condenado a acumular ou a conservar.


Destas palavras, depreende-se que Péter já não pertencia à geração que acumula e nem mesmo à segunda geração. O autor aqui, dá a entender que é durante a vida de Péter que a fortuna da família irá desaparecer.


O cenário é o mesmo da primeira parte. A mesma pastelaria onde Marika conversava com a amiga. Alguns anos depois, é a vez de Péter ocupar a mesa de um canto obscuro daquele local e contar a um amigo a sua versão dos factos: a dissolução de um casamento, onde o gelo já se instalou por um lado, e a desilusão de uma paixão de longa data. A falência de ambos os relacionamentos: o primeiro, com a mulher perfeita; e o segundo, com a paixão desmedida, incomensurável.


Péter é um narrador mais completo que Marika, por agregar, já,dois pontos de vista: a sua própria forma de olhar os acontecimentos e o conhecimento da conversa ocorrida anos antes, entre a ex-esposa e amiga, naquele mesmo lugar, fruto de uma indiscrição. Além disso, no tempo em que decorre esta segunda parte, Péter está já divorciado da segunda esposa, o que explica o teor pessimista do discurso e a opinião em geral pouco positiva das mulheres.


É pelo monólogo de Péter que nos apercebemos, também, das mudanças das relações de poder entre as diferentes classes sociaisno espaço de uma década: da riqueza que muda de mãos, da alteração dos hábitos, comportamentos, da linguagem verbal e dos gestos, do devir das mentalidades. Em suma, a transformação da cultura de um povo. E, também, daquilo que permanece intemporal: as expressões faciais que revelam o pensamento das pessoas, quando julgam não estar a ser observadas, gestos que acabam sempre por traí-las.


Depois da meia-noite, este café fica deserto e frio. A última vez que cá estive era ainda um estudante estagiário, foi por altura do Carnaval. Na época, eram lugares conhecidos, viam-se muitas mulheres, como aves coloridas, cintilantes e divertidas. Passaram-se décadas sem cá pôr os pés. O tempo correu, o local endomingou-se, mudaram os frequentadores. Agora vem cá a alta sociedade, uma clientela nocturna…sabe, a gente bem, como se diz.


Nas primeiras páginas desta segunda parte, o Autor explica, pela voz de Péter, a intenção da obra, ou seja, as causas que são responsáveis pela grande tragédia da Humanidade, petrificando a vida, dotando-a de um cinzentismo doentio: a solidão.


O livro é, todo ele, a tentativa de explicação de um estado de alma que acaba por assolar as três personagens principais – uma solidão recorrente, aliada à sensação de um inexorável fracasso.


A solidão que, antes ou depois, precipita qualquer ser humano, como um viajante nocturno, numa fossa.


A Humanidade, na sociedade industrial, perece viver segundo o Autor, ao falar através da voz de Péter:


Como se a alegria se apagasse da terra. Às vezes, por instante, ainda bruxuleia, aqui e além. No fundo da alma humana, vive a recordação de um mundo feliz, solar, brincalhão, no qual o dever é, simultaneamente, divertimento e esforço, agradável e sensato.
(…)
Talvez os gregos sim, tenham sido felizes (…) porque eram cultos, no sentido mais profundo, mais inculto do termo, incluindo os oleiros…Mas nós não vivemos numa verdadeira cultura, mas numa civilização de massas, mecânica e enigmática. Todos têm a sua parte e ninguém a verdadeira alegria (…) e toda esta tensão deriva da solidão
.
(…)
Conheço mães com meia dúzia de filhos, em cujo rosto se surpreende a mesma solidão e desconfiança, e burgueses solteirões que nem a tirar as luvas conseguem esconder um ar artificioso como se as suas vidas fossem uma sequência de gestos forçados. E quanto mais os políticos e profetas se preocupam em construir comunidades cada vez mais artificiais no seio da comunidade, quanto mais educam as crianças nesse sentido forçado de comunidade, maior será a solidão das almas
.



O único desvio deste cinzentismo quase niilista reside na presença da beleza na sua forma mais pura, como a estátua viva do arquétipo da beleza selvagem, representado por Aldozó Judit.
Diante dela, Péter não sente estar perante algo de ameaçador, como Marika ou Lázar, mas a sensação inquietante de ter diante de si a concentração da beleza primordial, ao olhar directamente para a face do seu ídolo.


…um rosto aberto, expectante, radioso e confiado, como só pode ser um rosto humano em início de vida quando ainda não comeu da árvore da consciência, nem conheceu a dor e o medo.



O drama de Péter, que se desenrola no desfiar do relato da sua história ao amigo, enquanto degustam uma garrafa de vinho tinto a história desenvolve-se sem pressas, pela noite dentro, no sentido de constatar a inexistência de uma fórmula ou modelo conceptual que ensine a humanidade a ter sucesso nos seus relacionamentos. Esta fórmula ideal felicidade adquire os contornos de uma quimera, cuja realidade, o fracasso resultante da desconfiança, do medo, do ensimesmamento, da solidão e, mais tarde, do conformismo, em evidente analogia com o mito genesíaco da perda da felicidade pela expulsão do paraíso. A infelicidade tem a ver com o ciclo de vida do Homem e com o crescimento e amadurecimento das relações, decorrentes do processo de mudança em curso, uma vez que, na Terra, sendo esta, um organismo vivo, nada é estático.



…poetas, médicos, deviam falar aos jovens da alegria da convivência, das possibilidades da vida a dois, homens e mulheres…não da “vida sexual”, mas da alegria, da paciência, da modéstia e da satisfação. Quando verbero os homens, é que neles desprezo, talvez, acima de tudo, essa cobardia – a cobardia como escondem, de si mesmos e do mundo, o segredo da própria vida.


Péter ama Judit porque está decidido a romper com o tédio, a solidão a que o obriga o dever de se comportar como o burguês rico de conduta exemplar; deseja a romper com a aridez de uma vida social onde tudo tem de ser perfeito, o paraíso artificial onde se representa, se finge uma vida de delicadeza, serenidade, correcção. Péter explica este tipo de comportamento convencional pelo facto de a burguesia ser uma classe exclusivamente empreendedora, aquela que consegue não só detonar as mudanças nas estruturas económicas, mas também o teor das relações entre os agentes económicos, susceptíveis de potenciar ou atenuar o conflito entre classes o qual, por sua vez, promove a circulação das élites.


Era como se estivessem sempre a prestar contas de alguma coisa. Viviam segundo planos rigorosamente estabelecidos. Tinham visto grandes povos projectarem planos quadrienais e quinquenais com vista ao aperfeiçoamento da raça e ao progresso da nação que, a seguir, eram impostos de forma cruel, executados a qualquer custo, sem respeitar minimamente a vontade das populações. Por que o objectivo destes planos de longo alcance não é o bem-estar do indivíduo, mas a prosperidade de um povo em geral, de uma nação.

(…)



Na base das nossas acções, dos nossos hábitos, havia algo de renúncia consciente.



Péter é, também, de opinião que a raiz, tanto dos conflitos interpessoais como sociais, tem a ver com a relação que cada um estabelece com o dinheiro. O que não anda, de todo, longe da verdade, já que é um dos motivos que em muito contribuíram para o erodir de ambas as relações.


Mas no que toca a Judit, familiares e amigos de Péter vêem na jovem, oriunda da classe proletária e com antecedentes de pobreza extrema, tudo menos “a mulher certa”. Judit é, pelo contrário, vista por todos como uma mulher perigosa, capaz de trazer à vida de Péter uma paixão, sem dúvida fulminante pela sua teluricidade, mas fatal. O desenrolar dos acontecimentos mostram que, após dois divórcios, a tristeza e a solidão parecem ser a companhia permanente de Péter, interrompida no passado, apenas pela intrusão de Judit.


Nessa solidão entrou, um dia, Aldozó Judit.


A descrição do momento em que Judit, aos quinze anos, entra em casa de Péter pela primeira vez e vira o rosto para a luz, de forma a expô-lo ao olhar do futuro patrão, é um dos trechos mais belos, poéticos e artísticos da obra de Márai. Um trecho dotado de uma força passional que ilumina o carácter sombrio do romance, como a chama de uma vela. Em particular o o segundo em que Judit expõe, revela o rosto pleno de beleza total, é um instante de puro deslumbramento. E de subversão com o quê de revolucionário também, pois ao fazê-lo, a jovem empregada olha o filho do patrão com a mesma altivez de uma princesa, numa atitude “silenciosamente condescendente”.


E porque era terrivelmente bela, de uma beleza austera, virgem e completamente selvagem, um exemplar perfeito da criação, que a natureza só uma vez consegue desenhar e fundir com tal perfeição, essa beleza começou, a pouco e pouco a influir na atmosfera da nossa casa, como um surdo e contínuo fundo musical. A beleza é, seguramente, uma força, a par do calor, da luz ou da vontade humana.


Outro trecho de grande força telúrica nesta segunda parte é aquele que trata da questão do desejo, na cena em que Péter observa, hipnotizado, os quadris de Judit, ajoelhada diante da lareira, pose que a jovem enfatiza, de forma provocante, ao saber-se observada.
Mas e, contrapartida, a solidão traz, também, a liberdade à vida de Péter, em vários momentos da narrativa: o primeiro foi durante o curto exílio na Europa, pouco antes de casar pela primeira vez e já depois de conhecer Judit, durante o qual tem a possibilidade de perceber a tendência da evolução económico-sócio-política do continente, no período entre as duas guerras e, depois, já após o segundo divórcio. O clima da “paz armada”, verificado no interregno entre as duas Guerras Mundiais é particularmente elucidativo :

todos se moviam com uma certa desconfiança como quem foi vítima de uma grave e inesperada rapina. Todos, indivíduos e nações, procuravam mostrar-se afáveis, abertos e magnânimos, mas em segredo, á cautela, apertavam o revólver no bolso das calças.


No regresso a casa acaba por desposar Marika, a quem todos consideram “a mulher certa”.
O ciúme é ums das facetas do comportamento humano melhor e mais exaustivamente retratadas por Márai. O autor, mais uma vez pela voz de Péter, identifica-se com a definição de Léon Tolstoi como “uma forma mesquinha e desprezível de vaidade. Discorda, no entanto, da solução desumana proposta pelo autor de Guerra e Pazpara o evitar - uma solução não muito distante do uso da burka em alguns países do médio Oriente - apesar de achar igualmente aviltante a redução da mulher à categoria de objecto de desejo, pelo mercadejar dos dotes físicos, imposta pelos media.


Só num sistema de produção e ordem social no seio do qual a mulher a si mesma se considera mercadoria é que precisam disso.


No entanto a análise das descrições das atitudes de Judit, mesmo no discurso apaixonado e melancólico de Péter, apercebemo-nos que a paixão não afecta minimamente Judit. Trata-se de um relacionamento e onde está inequivocamente presente um desequilíbrio de forças, onde quem não ama é quem domina pela atracção que exerce sobre o outro e o torna vulnerável. Através da união com o filho do patrão, Judit inicia, assim, um processo de vingança social, um resgate de contas pela infância mergulhada na miséria e no desconforto e dando azo, após o casamento com Péter, a um autêntico cenário de luta de classes doméstico.


À timidez inicial de Judit, segue-se uma voracidade consumista, traduzida numa insatisfação permanente e incomensurável, a quel acabará por se transformar em apatia.


O casamento, enquanto fruto da paixão em Péter, serve de pretexto ao Autor para uma dissertação sobre o amor conjugal enquanto vertigem, a operar como antídoto face à melancolia. Nela, o carácter telúrico de um amor perfeitamente carnal é comparado, audaciosa e algo hiperbolicamente, a uma aventura na selva. Péter afirma, perante o amigo e confidente, a absoluta convicção que a paixão, quando mútua (e só neste caso) coloca o homem e a mulher no mesmo plano, isto é, em pé de igualdade em termos absolutos.


Terceira Parte – Judit


Judit é a segunda narradora feminina presente na obra e, também, a protagonista. O terceiro vértice do triângulo, que no fim se transforma num quadrado amoroso. No entanto, apesar do papel central, nem sempre o leitor consegue sentir empatia pela personagem. O discurso de Judit é, por um lado, melífluo, untuoso, usa e abusa da adulação para conseguir o que quer. O monólogo é dirigido ao amante, a quem sustenta, com o dinheiro da venda das jóias, herdadas do casamento. Mas o tom da narrativa muda radicalmente quando se refere ao passado: ao caracterizar as pessoas que cruzam o seu caminho as suas palavras tornam-se implacáveis, amargas. As atitudes que toma no passado revelam, também, a inexistência de qualquer tipo de inibição em utilizar a própria beleza ou o dinheiro para atingir os seus objectivos.


O relato prossegue, desta vez, durante uma noite de insónia, numa pensão romana, versando sobre a história do seu casamento com Péter e a vida após o divórcio. O discurso de Judit confirma aquilo que se depreende nas entrelinhas do relato feito por Péter na pastelaria, nas frases de Lázar e na intuição de Marika: que o casamento com o filho do patrão não reside em motivações sentimentais ou românticas, mas em finalidades puramente práticas.


O discurso é contundente, cínico ao mencionar daqueles a quem decidiu espoliar no passado, sem revelar o menor remorso, pena ou arrependimento: “os ricos”. Sendo-lhe mais fácil tolerar a grosseria dos novos-ricos do que o tratamento cavalheiresco, educado ou condescendente dos grandes senhores, Judit identifica na observância quase obsessiva pelas convenções, pela ordem, distinção e regras de etiqueta, uma espécie de loucura ou mania, “expressa de forma educada. “
Por outro lado, Judit mostra ser uma mulher extremamente inteligente, e facilmente adaptável a novas situações, com uma capaz de aprender quase instantâneamente. Durante o breve tempo em que convive com Lázar, enquanto dura a ocupação alemã na Hungria, Judit empenha-se em absorver conhecimento, quer através de livros quer mediante as conversas com o escritor, como uma esponja. Ou uma planta carnivora.


Judit interessa-se, tal como as outras personagens, pelas características que distinguem a mentalidade burguesa da mentalidade proletária, uma vez que teve a oportunidade de se movimentar em ambos os meios. Está convencida que estas diferenças de mentalidade residem na forma em como cada gruipo social estabelece ou estrutura as relações ou laços familiares. Para uns, a tradição e a cultura, a forma de estar é como que uma missão. Para outros, uma mera necessidade de sobrevivência, sendo os primeiros instruídos sobretudo com a razão e não tanto com o coração ou com as vísceras.


Aneste aspecto, Judit entra em forte contradição, uma vez que, se para a classe proletária o estabelecimento dos laços ou relações familiares se baseia numa mera necessidade de sobrevivência, então seria a este estrato social que seria imputável o primado da razão em detrimento das suas escolhas afectivas e das relações familiares e não o contrário. Por outro lado, Judit acredita que “ser rico” ou pertencer a uma elite social é uma questão de atitude:

Se alguém é rico, (…)sê-lo-á para sempre, eternamente, , e quem não é rico, de pouco lhe servirá ter muito dimheiro, pois nunca será um rico a sério (…) é preciso acreditar que se é rico a valer.



Neste ponto, o pensamento de Judit converge com o de Lázar que é da opinião que o processo de socialização está ligado ao processo de enculturação no sentido antropológico:


A cultura é um acto reflexo.


Neste caso, tratar-se-ia de um conjunto de respostas automáticas e socialmente aprendidas, inculcadas desde a mais tenra infância.


O abismo cultural entre Péter e Judit teria estado, segundo esta perspectiva, na falência do casamento de ambos, o qual teria ruído a partir de uma fissura estrutural. A falta de cumplicidade e impossibilidade de partilha de todo um conjunto de experiências seriam, apenas, algumas das consequências decorrentes dessa mesma falha.


A invasão da Hungria pelo Exército Vermelho e a implementação do regime comunista são temas abordados por Péter ainda na segunda parte, mas também por Judit, na terceira parte do romance. Neste caso, de forma mais exaustiva, ao que não é alheio o facto de esta parte do romance ter sido escrita muito depois da Guerra de 1939-1945 e concluída já no final dos anos 1970. Lajos, o amante, mais adiante, no epílogo, trará as conclusões finais.


Na pensão romana, Judit comenta as as alterações políticas ao criticar as expropriações a seu ver arbitrárias, a nacionalização das empresas e extinção dos ofícios. Mesmo dentro deste contexto generalizado de reengenharia social, Judit consegue fugir com as jóias, produto do casamento, que esconde das autoridades. Lajos, por sua vez, foge da polícia política após ser aliciado para a função de delator, pouco depois de o pequeno negócio do pai ter sido, também, espoliado. É, pela voz de Judit, ficamos a saber do destino e da dispersão da fortuna de Péter e da forma como Lázar vive os anos da ocupação nazi e a formula para se fazer triunfar um escritor dentro da Nova Ordem Social.. A Revolução Cultural acontece também na Hungria, à semelhança daquela que é implantada na China de Mao Tse Tung, isto é, colocando a Arte e a Literatura ao serviço da Política, ou para sermos mais exactos, ao serviço do Regime Político vigente. O que constitui um grave incómodo para um livre-pensador como Lázar. Este sente que o seu ofício deixou de o ser a partir do momento em que começa a ser mutilado pela Censura.


Judit fala do tempo em que viveu em casa do escritor, como hóspede, altura em que partilharam o pensamento e a miséria. Fala dos bombardeamentos de uma forma vívida, como se tivesse regressado à toca subterrânea da infância.


Em casa de Lázar, e apesar da ameaça das bombas, Judit sente ter encontrado um refúgio. A presença do escritor tranquiliza-a. Mas sente-se, também, desafiada, não só porque o seu companheiro de refúgio perecer imune à sua beleza, mas também por sentir um desejo irresistível de entender a mente de um ser tão complexo quanto estranho. No início, e mesmo muito depois de lhe ter perdido o rasto, Judit tem dificuldade em compreendê-lo e aos seus escritos. Até mesmo em interpretar algumas passagens das obras que este lhe recomenda. Judit demora algum tempo a adquirir conteúdos de forma apoder fazer as associações necessárias a entender todos os subentendidos nas frases dos autores que lê.


Por outro lado, Lázar sente-se um pouco na pele de Pigmalião. Enquanto que Judit sente-se fascinada pela aparentemente inesgotável fonte de conhecimento de que parece gozar o escritor. A tal ponto que, durante o relato, Lajos chega a sentir alguma insegurança, receando ver-se suplantado. Este, entretanto, exerce sobre ela o domínio perfeito porque lhe controla as finanças, ao executar ele próprio a venda das jóias com que Judit sustenta as necessidades diárias. Lázar, por sua vez, representa, na narrativa de Judit, não um amor sensual mas a volúpia do conhecimento ao empenhar-se em proteger Judit, convencido que a sua beleza a torna vulnerável, uma vez que para a maior parte dos humanos, isto é, para os feios ou para os medianamente bonitos, A beleza é uma afronta. E, no caso de Judit, que a possui em abundância, coloca-a na mira daqueles que dela querem usufruir ou comercializar. Para Lázar, também o talento, para os que o possuem em maior proporção do que a maioria, é uma provocação; e o carácter, então, um atentado. Porque a desproporção é sempre aviltante. E no caso dos seres notoriamente belos, talentosos ou íntegros, estarão mais expostos que a maoria a actos de boicote ou sabotagem, colocados em posição mais vulnerável em relação a uma esmagadora mole de seres menos favorecidos.


Em relação àqueles a quem classifica na categoria de “ricos”, Judit está convencida de que estes não são na verdade “cultos” mas parasitas de algo a que antes se chamava “cultura” como o talento ou conhecimento.


Os gregos eram cultos porque todo o povo se alegrava (...) e essa alegria é a cultura (...) mas depois esse povo desapareceu e no seu lugar ficaram apenas pessoas que falam grego...e já não é a mesma coisa.

Epílogo – Lajos, dez anos após a morte de Judit


O epílogo de A Mulher Certa incide, quase todo, nas mudanças verificadas pela evolução da situação geopolítica no Continente Europeu e Americano, com a eclosão da Guerra Fria. Nesta fase do romance é explorada a forma de vida de um proletário, dentro dos diferentes sistemas político-económicos, onde narrador e interlocutor acabam por concluir que nenhum sistema é perfeito. Desde a arbitrariedade manifesta na prepotência do Estado ao interferir na esfera privada da vida do cidadão, nos regimes ditos comunistas, testemunhada pelo narrador, até à implacabilidade da selva humana presente nos sistemas liberais das grandes metrópoles do Ocidente, com as ruas controladas pelos gangs, pelos cartéis a liderar o tráfico de droga e humano ou, com a vida dos cidadãos e as instituições controladas pelos abutres que comandam a especulação financeira.


O local da acção é Nova Iorque no final dos anos 1970, altura em que a Cidade começa a ser dominada pelas máfias locais. Lajos, ou Ede, já não trabalha como baterista, em clubes nocturnos, como no tempo em que era amante de Judit. É apenas um barman. Hoje, a prioridade é a estabilidade, garantida pela segurança que lhe confere um emprego de salário modesto mas que lhe permite ter um automóvel, sustentar a casa e a família sem grandes luxos. O mergulho no passado dá-se, desta vez, ao balcão do bar, onde serve bebidas, em conversa com um cliente. Lajos recorda a mulher húngara que foi sua amante em Roma e gastou os últimos tostões com ele, até à morte.


É, também, abordada a questão da literatura e da pseudo-literatura e o oportunismo vazio dos escritores que escrevem, ou escrevinham apenas para ganhar dinheiro vendo na escrita nada mais do que um negócio como qualquer outro. Ou seja a questão do fenómeno marginal a que está sujeita a Grande Literatura.


O próprio Lajos, não deixa de se submeter a esta lógica materialista, embora noutra vertente: à semelhança dos escritores que deixam de o ser para escrever em função do que as massas ou um determinado regime político desejam ver escrito, Lajos também se vende. Neste caso, tornou-se gigolo profissional para elevar um pouco os rendimentos familiares. Prostitui o corpo como alguns prostituem o intelecto ou a escrita, desvirtuando-a, ao esvaziá-la de conteúdo ao escrever apenas para proporcionar a evasão ou o simples voyeurismo do leitor.


Um dia, um encontro casual ao balcão do bar onde trabalha dá-nos a conhecer em que se transformou Péter. Pesar de já não ter a fortuna colossal de outros tempos, mantém a atitude de um grande senhor, confirmando a opinião de Lázar de que “a cultura é um acto reflexo”. Péter é um grande senhor, mas de uma outra era, que não consegue nadar nas águas turbulentas do capitalismo selvagem da actualidade.


Fala-se ainda de consumismo. Dos bens adquiridos compulsivamente para exibição de status, do crédito desgovernado. De como apesar do poder de compra “o proletário é ainda proletário e o senhor ainda senhor”.


No entanto, sob um determinado prisma, as coisas inverteram-se: a produção é feita em, larga escala para as massas e não para uma élite ou um grupo mais ou menos restrito de consumidores. Por isso, O senhor mata a cabeça para me fazer a mim, proletário, consumir.(Lajos)


As últimas cenas são protagonizadas por Péter e Lajos, os dois homens mais importantes na vida de Judit: um que lhe proporcionou a mudança de estilo de vida, o portal de acesso a um mundo diferente, que antes apenas entrevia; e o outro, aquele que lhe proporcionou o prazer no sentido mais absoluto do termo. Ambos partilham a memória da mulher a cuja intimidade acederam, um dia. A conclusão a que chegam é a de que o amor é a única força motriz susceptível de colocar homens e mulheres em pé de igualdade e cuja lembrança é capaz de unir os seres mais improváveis. Uma força absolutamente revolucionária na sua essênncia. E, por isso mesmo, temida.


Caminhávamos como dois velhos amigos numa intimidade profunda que só pode existir entre dois homens que estiveram na cama com a mesma mulher (...). E esta é, na verdade a verdadeira democracia.

in http://hasempreumlivro.blogspot.pt/2010/08/mulher-certa-de-sandor-marai-dom.html

ISABELA FIGUEIREDO LANÇA “UM CÃO NO MEIO DO CAMINHO”

https://youtu.be/qTt36ja7LOQ?si=Kjlj0eKp0zUYnBLY&t=168